sexta-feira, 3 de maio de 2024

Asas na Noite

 




Asas na Noite (Nightwings), de Robert Silverberg. Tradução: Eduardo Saló. 200 páginas. Rio Maior Alfragide (Portugal): Editorial Panorama, Coleção Antecipação, n. 44, sem data – provavelmente início dos anos 1970. Lançado originalmente em 1969.

 

Esta é uma das histórias mais belas já escritas em toda a ficção científica. Num futuro de dezenas de milhares de anos, a Terra vive um período de decadência civilizatória e dominada por uma espécie alienígena. Após um longo e atribulado período de desenvolvimento viveu um apogeu material e interestelar para, por causa em parte dele, sofrer um colapso e decair em termos civilizatórios, a ponto de ser dominada por uma espécie alienígena. Como se verá é uma história sobre expiação e redenção, mas não só dos personagens, como de toda a humanidade, como se ela mesma fosse em si uma personagem.

Este sumário sugere uma história futura interessante, mas talvez nem tão diferente de outras de perfil semelhante. Pois o que a torna realmente singular é o desenvolvimento colorido e inspirado criado por Robert Silverberg, principalmente na atmosfera de exotismo que beira a fantasia e o maravilhoso, com cenários, situações e personagens únicos e inesquecíveis.

Publicada na revista Galaxy, sob edição de Frederik Pohl (1919-2013), em setembro de   1968, situa-se no contexto da melhor fase da carreira de Silverberg, no qual ele havia se reinventado, após publicar muitos contos de aventuras espaciais sem mérito maior na década anterior, salvo uma ou outra exceção. Assim, Asas na Noite – premiada com o Hugo 1969 e finalista do Nebula 1968 –, surge em meio a outras obras notáveis como, por exemplo, os romances Espinhos (Thorns; 1967), O Correio do Tempo (Up the Line; 1969) e Downward to the Earth (1969), além de histórias curtas notáveis, como "Moscas" (Flies; 1965), "Passageiros" (Passengers; 1967) e "A Dança do Sol" (Sundance; 1968).

Asas na Noite, nesta versão publicada em Portugal, se constitui no romance fix-up que reúne as três novelas situadas neste universo ficcional. A primeira é, justamente, “Asas da Noite” excepcional coletânea de Silverberg, publicada também no Brasil na coletânea Mutantes: Os Melhores Contos de Ficção Científica (Melhoramentos, 1991) – note que o título da novela é Asas da Noite e não na, e penso que o título nacional é o mais correto. As outras duas, que compõe o livro ora resenhado é “Entre os Recordadores” (1968) e “A Caminho de Jorslem” (1969) – finalista do Nebula 1969 e do Hugo 1970.

Em Asas na Noite, como dito, a civilização vive num futuro distante em decadência ao apogeu de outrora, quando, ao explorar as estrelas impôs uma política de expansão e imperialismo a outras formas de vida pelo universo e, internamente, ao tentar controlar a meteorologia do planeta, provocou uma catástrofe climática que viu submergir os antigos continentes da Usamérica e da Sudamérica, conhecidos em tempos distantes como América do Norte e do Sul.

A humanidade se reorganizou precariamente e dividiu-se em várias corporações específicas como a dos Observadores, Defensores, Recordadores, Voadores, Peregrinos, Dominadores, Servidores, Músicos, Voadores, Cirurgiões, Mercadores, e muitas outras. Regidas por regras próprias e rigorosas, segregam-se umas às outras em direitos exclusivos a cada uma delas, e convivem com os sem corporações, totalmente marginalizados, como os mendigos e os enjeitados – estes descendentes de experiências genéticas malsucedidas e que vivem sem função nesta ordem social. No fundo, um tipo de estratificação social semelhante à da Idade Média, pois também aqui há uma influência mútua entre poderes políticos e religiosos.

E é neste contexto que acompanhamos a trajetória de vida de um observador, que tem de perscrutar com seus instrumentos o céu para avisar sobre uma invasão alienígena prometida há muito tempo e, considerada quase como um mito. Isso ajuda a entender porque ele e os demais observadores têm pouco prestígio, sendo encarados quase com desdém. Ele nos conta sua história em primeira pessoa em sua jornada para a metrópole de Roum – sim a antiga Roma, pois é natural que milhares de anos depois os nomes tenham sofrido alguma mudança, como já havia citado com relação ao extinto continente americano.

O observador – que não pode revelar o seu nome e nem se casar – tem a companhia de Avluela, uma bela jovem da corporação dos Voadores. Modificados geneticamente, estas pessoas têm asas, mas só podem voar durante a noite, daí a alusão ao título da novela e do próprio romance. Sua beleza e ingenuidade desperta sentimentos paternais no velho observador e sexuais no enjeitado Gormon, que também os acompanha.

Contudo, após chegarem a seu destino, as coisas se precipitam, pois, o Príncipe de Roum, toma Avluela como sua consorte, o enjeitado revela uma outra identidade, e a profecia se realiza: o observador avista a chegada dos invasores que, com grande poder militar, rende rapidamente não só a grande metrópole, mas sabe-se depois, a própria Terra.

Asas na Noite termina numa espécie de clímax e deixa no ar o que poderia acontecer com a chegada dos invasores. Este desfecho em aberto e o sucesso da história fizeram com que Silverberg fosse incentivado a escrever mais sobre este universo. Para sorte de todos nós, embora todos os elementos centrais estejam presentes nesta novela brilhante.




Portanto, a aventura continua com “Entre os Recordadores”, primeiro vista na Galaxy de novembro de 1968. Após a queda de Roum, o ex-observador parte para Perris – Paris – tendo como companheiro um peregrino cego, mas que, na verdade é o Príncipe de Roum, que escapou à tomada da cidade, mas foi ferido por Gormon, em vingança por ter ficado com Avluela. Chegando a Perris, o ex-observador procura a ordem dos Recordadores, pois já que não pode mais vislumbrar o futuro, quer se voltar ao passado. Ambos se envolvem com um casal da ordem – Elore e a sedutora Olmayne – com consequências decisivas para seus destinos.

Nesta história, Silverberg explica melhor o contexto histórico e social do universo ficcional, em especial cada um dos três ciclos. Assim, no primeiro, a humanidade se desenvolveu dos seus primórdios até chegar ao espaço – num paralelo, talvez com o ciclo que estejamos deixando em nossa realidade; no segundo, a Terra chega ao seu apogeu econômico e tecnológico, não só travando contato com outras civilizações extraterrestres, mas dominando de forma imperialista várias delas. A Terra se torna o centro político das espécies inteligentes, mas provoca mais ressentimentos do que admiração. O que, em parte, explica sua queda no terceiro ciclo, embora as razões tenham sido principalmente internas. Através de uma tentativa tão ambiciosa quanto quixotesca de controlar a atmosfera do planeta, ocorre um cataclismo ambiental, com terremotos, maremotos e erupções vulcânicas, que faz com que a Usamerica e a Sudamerica – correspondentes ao continente americano – submerjam! E é neste terceiro ciclo que a história se passa, e agora dominada por uma raça alienígena do planeta H362, que outrora foi humilhada ao ter alguns de seus seres expostos num zoológico espacial situado na Terra, e prometeu vingança, daí a invasão.

O episódio final é “A Caminho de Jorslem”, publicada também na revista Galaxy, em fevereiro de 1969 – indicada ao Hugo de 1969 e ao Nebula de 1970. Após se tornar o recordador Tomis, o observador original se torna um peregrino e busca se redimir de seus pecados e falhas – sobretudo por ter contribuído para a causa dos invasores, ao tentar livrar da morte o Príncipe de Roum. Numa longa jornada muito atribulada, ao lado de Olmayne, ele chega finalmente à cidade santa de Jorslem – Jerusalém –, onde finalmente terá o desenlace de sua trajetória e a esperada redenção e o amor. Isso porque ele reencontra Avluela, e ao passar por uma cerimônia religiosa e se submeter como parte dela a um procedimento cirúrgico, recupera sua juventude. É aceito na nova ordem dos Redentores e, ao lado, de Avluela, dá um novo sentido à sua vida.

No fundo, Asas na Noite – o romance – elabora com rara beleza e sensibilidade talvez o tema mais abordado por Silverberg em sua carreira: o da redenção. Esta busca pela volta por cima, pela expiação e, aqui no caso, literalmente, numa transformação física e espiritual, é recorrente, em sua obra. Exemplos como no conto “Moscas” (1965) e os romances Espinho (Thorns; 1967), Labirinto (The Man in the Maze; 1969), do inédito em língua portuguesa Downward to the Earth (1970) e de Uma Pequena Morte (Dying Inside; 1972), entre outros. Mas o diferencial de Asas na Noite é que a redenção tem um sentido e objetivo coletivo, e no caso, de fundo místico ou religioso, talvez inspirado no contexto contestatório e libertário dos anos 1960 e que funciona muito bem na história. Uma conclusão emocionante para uma das mais belas histórias de ficção científica já escritas.

Marcello Simão Branco

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No contexto da publicação da resenha acima, está sendo lançado o livro – em formato e-book – Os Mundos Abertos de Robert Silverberg, de Marcello Simão Branco, nova edição revista, ampliada e atualizada da primeira edição lançada em 2004.

Publicado agora pela editora Mojunganide, em seu selo Yadhe, conta, ainda, com prefácio de Cesar Silva e uma diagramação caprichada, além de capa e belíssimas ilustrações internas de Daniel Abrahão, inspiradas em histórias de Silverberg.

O livro pode ser adquirido aqui:

https://www.amazon.com.br/Mundos-Abertos-Robert-Silverberg-Cient%C3%ADfica-ebook/dp/B0D57RR38D/ref=sr_1_25?dib=eyJ2IjoiMSJ9.e7TGiiWs-AKafgSJhrgoDwAkKTMqKYjq_DmVTYlJe4Fnn3zK-t7RARhcMmKg9n5M4LeACdqYPQkWLrEn7zEBeY7WiGp8VPKvfxiAQTdXRI89N1Riw22JJ-6QWUuhTuwi4bMr1BGtxkWKwTTe5Nw18zt1lW6TEdYTgmeuGpDVViWvnVGAWHsaiRHP6uDXnitG-ER--RDnqbKOqB3PDkIy3_b3z7GWZsSPMBqC1vorIz9wHlrMPlHNFoRoO2nFAqWpLCO_SeZd4uPXfw8fFnaAkuRd_lefGvceGfBNS1Fe_Tw.ZkDmIfVWk32s9PELuChEi7fOyOUNNqc5c0TJxs9Ayt4&dib_tag=se&qid=1716901056&refinements=p_27%3ACesar+Silva&s=books&sr=1-25

Mais detalhes de Os Mundos Abertos de Robert Silverberg pode lido aqui: 

https://mensagensdohiperespaco.blogspot.com/2024/05/lancamento-os-mundos-abertos-de-robert.html


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