Asas
na Noite (Nightwings), de Robert Silverberg. Tradução: Eduardo
Saló. 200 páginas. Rio Maior Alfragide (Portugal): Editorial Panorama, Coleção
Antecipação, n. 44, sem data – provavelmente início dos anos 1970. Lançado
originalmente em 1969.
Esta é uma das histórias
mais belas já escritas em toda a ficção científica. Num futuro de dezenas de
milhares de anos, a Terra vive um período de decadência civilizatória e
dominada por uma espécie alienígena. Após um longo e atribulado período de
desenvolvimento viveu um apogeu material e interestelar para, por causa em
parte dele, sofrer um colapso e decair em termos civilizatórios, a ponto de ser
dominada por uma espécie alienígena. Como se verá é uma história sobre expiação
e redenção, mas não só dos personagens, como de toda a humanidade, como se ela
mesma fosse em si uma personagem.
Este sumário sugere uma
história futura interessante, mas talvez nem tão diferente de outras de perfil
semelhante. Pois o que a torna realmente singular é o desenvolvimento colorido
e inspirado criado por Robert Silverberg, principalmente na atmosfera de
exotismo que beira a fantasia e o maravilhoso, com cenários, situações e personagens
únicos e inesquecíveis.
Publicada na revista Galaxy, sob edição de Frederik Pohl (1919-2013),
em setembro de 1968, situa-se no
contexto da melhor fase da carreira de Silverberg, no qual ele havia se
reinventado, após publicar muitos contos de aventuras espaciais sem mérito
maior na década anterior, salvo uma ou outra exceção. Assim, Asas na Noite – premiada com o Hugo 1969
e finalista do Nebula 1968 –, surge em meio a outras obras notáveis como, por
exemplo, os romances Espinhos (Thorns; 1967), O Correio do Tempo (Up the
Line; 1969) e Downward to the Earth
(1969), além de histórias curtas notáveis, como "Moscas" (Flies; 1965), "Passageiros" (Passengers; 1967) e "A Dança
do Sol" (Sundance; 1968).
Asas
na Noite, nesta versão publicada em Portugal, se constitui no
romance fix-up que reúne as três
novelas situadas neste universo ficcional. A primeira é, justamente, “Asas da
Noite” excepcional coletânea de Silverberg, publicada também no Brasil na
coletânea Mutantes: Os Melhores Contos de
Ficção Científica (Melhoramentos, 1991) – note que o título da novela é Asas da Noite e não na, e penso que o título nacional é o mais correto. As outras duas,
que compõe o livro ora resenhado é “Entre os Recordadores” (1968) e “A Caminho
de Jorslem” (1969) – finalista do Nebula 1969 e do Hugo 1970.
Em Asas na Noite, como dito, a civilização vive num futuro distante em
decadência ao apogeu de outrora, quando, ao explorar as estrelas impôs uma
política de expansão e imperialismo a outras formas de vida pelo universo e,
internamente, ao tentar controlar a meteorologia do planeta, provocou uma
catástrofe climática que viu submergir os antigos continentes da Usamérica e da
Sudamérica, conhecidos em tempos distantes como América do Norte e do Sul.
A humanidade se
reorganizou precariamente e dividiu-se em várias corporações específicas como a
dos Observadores, Defensores, Recordadores, Voadores, Peregrinos, Dominadores,
Servidores, Músicos, Voadores, Cirurgiões, Mercadores, e muitas outras. Regidas
por regras próprias e rigorosas, segregam-se umas às outras em direitos
exclusivos a cada uma delas, e convivem com os sem corporações, totalmente
marginalizados, como os mendigos e os enjeitados – estes descendentes de
experiências genéticas malsucedidas e que vivem sem função nesta ordem social.
No fundo, um tipo de estratificação social semelhante à da Idade Média, pois
também aqui há uma influência mútua entre poderes políticos e religiosos.
E é neste contexto que
acompanhamos a trajetória de vida de um observador, que tem de perscrutar com
seus instrumentos o céu para avisar sobre uma invasão alienígena prometida há
muito tempo e, considerada quase como um mito. Isso ajuda a entender porque ele
e os demais observadores têm pouco prestígio, sendo encarados quase com desdém.
Ele nos conta sua história em primeira pessoa em sua jornada para a metrópole
de Roum – sim a antiga Roma, pois é natural que milhares de anos depois os
nomes tenham sofrido alguma mudança, como já havia citado com relação ao extinto
continente americano.
O observador – que não
pode revelar o seu nome e nem se casar – tem a companhia de Avluela, uma bela
jovem da corporação dos Voadores. Modificados geneticamente, estas pessoas têm
asas, mas só podem voar durante a noite, daí a alusão ao título da novela e do
próprio romance. Sua beleza e ingenuidade desperta sentimentos paternais no
velho observador e sexuais no enjeitado Gormon, que também os acompanha.
Contudo, após chegarem a
seu destino, as coisas se precipitam, pois, o Príncipe de Roum, toma Avluela
como sua consorte, o enjeitado revela uma outra identidade, e a profecia se
realiza: o observador avista a chegada dos invasores que, com grande poder
militar, rende rapidamente não só a grande metrópole, mas sabe-se depois, a
própria Terra.
Asas
na Noite termina numa espécie de clímax e deixa no ar o que
poderia acontecer com a chegada dos invasores. Este desfecho em aberto e o
sucesso da história fizeram com que Silverberg fosse incentivado a escrever
mais sobre este universo. Para sorte de todos nós, embora todos os elementos
centrais estejam presentes nesta novela brilhante.
Portanto, a aventura
continua com “Entre os Recordadores”, primeiro vista na Galaxy de novembro de 1968. Após a queda de Roum, o ex-observador
parte para Perris – Paris – tendo como companheiro um peregrino cego, mas que,
na verdade é o Príncipe de Roum, que escapou à tomada da cidade, mas foi ferido
por Gormon, em vingança por ter ficado com Avluela. Chegando a Perris, o
ex-observador procura a ordem dos Recordadores, pois já que não pode mais
vislumbrar o futuro, quer se voltar ao passado. Ambos se envolvem com um casal
da ordem – Elore e a sedutora Olmayne – com consequências decisivas para seus
destinos.
Nesta história,
Silverberg explica melhor o contexto histórico e social do universo ficcional,
em especial cada um dos três ciclos. Assim, no primeiro, a humanidade se
desenvolveu dos seus primórdios até chegar ao espaço – num paralelo, talvez com
o ciclo que estejamos deixando em nossa realidade; no segundo, a Terra chega ao
seu apogeu econômico e tecnológico, não só travando contato com outras
civilizações extraterrestres, mas dominando de forma imperialista várias delas.
A Terra se torna o centro político das espécies inteligentes, mas provoca mais
ressentimentos do que admiração. O que, em parte, explica sua queda no terceiro
ciclo, embora as razões tenham sido principalmente internas. Através de uma
tentativa tão ambiciosa quanto quixotesca de controlar a atmosfera do planeta,
ocorre um cataclismo ambiental, com terremotos, maremotos e erupções
vulcânicas, que faz com que a Usamerica e a Sudamerica – correspondentes ao
continente americano – submerjam! E é neste terceiro ciclo que a história se
passa, e agora dominada por uma raça alienígena do planeta H362, que outrora
foi humilhada ao ter alguns de seus seres expostos num zoológico espacial
situado na Terra, e prometeu vingança, daí a invasão.
O episódio final é “A
Caminho de Jorslem”, publicada também na revista Galaxy, em fevereiro de 1969 – indicada ao Hugo de 1969 e ao Nebula
de 1970. Após se tornar o recordador Tomis, o observador original se torna um
peregrino e busca se redimir de seus pecados e falhas – sobretudo por ter
contribuído para a causa dos invasores, ao tentar livrar da morte o Príncipe de
Roum. Numa longa jornada muito atribulada, ao lado de Olmayne, ele chega
finalmente à cidade santa de Jorslem – Jerusalém –, onde finalmente terá o
desenlace de sua trajetória e a esperada redenção e o amor. Isso porque ele
reencontra Avluela, e ao passar por uma cerimônia religiosa e se submeter como
parte dela a um procedimento cirúrgico, recupera sua juventude. É aceito na
nova ordem dos Redentores e, ao lado, de Avluela, dá um novo sentido à sua
vida.
No
fundo, Asas na Noite – o romance –
elabora com rara beleza e sensibilidade talvez o tema mais abordado por Silverberg
em sua carreira: o da redenção. Esta busca pela volta por cima, pela expiação
e, aqui no caso, literalmente, numa transformação física e espiritual, é
recorrente, em sua obra. Exemplos como no conto “Moscas” (1965) e os romances Espinho (Thorns; 1967), Labirinto (The Man in the Maze; 1969), do inédito
em língua portuguesa Downward to the
Earth (1970) e de Uma Pequena Morte
(Dying Inside; 1972), entre outros. Mas o diferencial de Asas na Noite é que a redenção tem um
sentido e objetivo coletivo, e no caso, de fundo místico ou religioso, talvez
inspirado no contexto contestatório e libertário dos anos 1960 e que funciona
muito bem na história. Uma conclusão emocionante para uma das mais belas histórias
de ficção científica já escritas.
—Marcello
Simão Branco
***
No contexto da publicação da resenha acima,
está sendo lançado o livro – em formato e-book – Os Mundos Abertos de Robert Silverberg, de Marcello Simão Branco,
nova edição revista, ampliada e atualizada da primeira edição lançada em 2004.
Publicado agora pela editora Mojunganide,
em seu selo Yadhe, conta, ainda, com prefácio de Cesar Silva e uma diagramação caprichada, além de capa e belíssimas
ilustrações internas de Daniel Abrahão, inspiradas em histórias de Silverberg.
O livro pode ser adquirido aqui:
https://www.amazon.com.br/Mundos-Abertos-Robert-Silverberg-Cient%C3%ADfica-ebook/dp/B0D57RR38D/ref=sr_1_25?dib=eyJ2IjoiMSJ9.e7TGiiWs-AKafgSJhrgoDwAkKTMqKYjq_DmVTYlJe4Fnn3zK-t7RARhcMmKg9n5M4LeACdqYPQkWLrEn7zEBeY7WiGp8VPKvfxiAQTdXRI89N1Riw22JJ-6QWUuhTuwi4bMr1BGtxkWKwTTe5Nw18zt1lW6TEdYTgmeuGpDVViWvnVGAWHsaiRHP6uDXnitG-ER--RDnqbKOqB3PDkIy3_b3z7GWZsSPMBqC1vorIz9wHlrMPlHNFoRoO2nFAqWpLCO_SeZd4uPXfw8fFnaAkuRd_lefGvceGfBNS1Fe_Tw.ZkDmIfVWk32s9PELuChEi7fOyOUNNqc5c0TJxs9Ayt4&dib_tag=se&qid=1716901056&refinements=p_27%3ACesar+Silva&s=books&sr=1-25
Mais detalhes de Os Mundos Abertos de Robert Silverberg pode lido aqui:
https://mensagensdohiperespaco.blogspot.com/2024/05/lancamento-os-mundos-abertos-de-robert.html
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