Crônicas da Estrela de Clarke, Geraldo Boz Junior. 264 páginas. Curitiba: Editora do Gera, 2020.
Num futuro distante a Terra envia sondas ao espaço para a colonização humana em algum planeta longínquo. Na verdade para vários deles, pois muitas sondas são lançadas, contendo embriões humanos para nascerem e viverem – por meio de mecanismos de engenharia nanorrobótica – em outros cantos do universo. Uma destas sondas, ao se aproximar da estrela Clarke, é abalroada por um meteorito e desvia sua rota – prevista para um planeta desabitado – e aterrissa num outro não previsto.
Esta é a premissa inicial do romance Crônicas da Estrela de Clarke, escrito pelo paranaense Geraldo Boz Junior. Mas, a partir da descida no planeta, que recebe o nome de Lukin – olho numa língua antiga da Terra – terá um desdobramento híbrido, digamos, em termos temáticos. Isso porque, conforme as duas inteligências artificiais (Ias) embutidas no interior da sonda – Marki e Alissa – descobrirão, Lukin já é habitado. Os seres são da espécie yampona, humanoides que construiram uma civilização semelhante à da Europa da Idade Média, com vários reinos e feudos, embora esteja ausente uma disputa entre poderes temporais e divinos, já que os povos não cultuam deuses, mas apenas uma ligação com algo semelhante ao sobrenatural, na condição de supostos poderes telepáticos. O detalhe fantástico é que eles convivem – de forma nada amistosa – com o principal predador do planeta, o dragão. O animal, contudo, não tem uma função assessoria na trama, mas, como o leitor constatará, se insere dentro do contexto político entre os reinos.
Com a descoberta da presença dos yampona, a missão de colonização humana fica em xeque, pois se efetivada certamente poderá mudar de forma irreversível o desenvolvimento e o destino dos nativos. Há uma forte controvérsia entre as duas Ias da sonda: Alissa contrária à colonização, e Mark a favor. Pouco a pouco, por meio do contato com Noah, um velho mercador perdido numa ilha distante, após ser raptado por um dragão, as duas Ias irão repensar seus argumentos sobre o que fazer.
O romance é muito movimentado, com uma prosa leve e bons diálogos, e os capítulos se alternam entre o contato de Mark e Alissa com Noah, e a guerra que ocorre entre os reinos de Mawan e Akkessilawa. O primeiro formado pelos boas-pessoas, pacíficos e com uma organização política anarquista, contrastados pelos cavaleiros do outro reino, guerreiros de uma ordem monárquica e ditatorial. São chamados de “parasitas” pelos boas-pessoas, pois eles não ocupam permanentemente os territórios que agridem, mas apenas saqueiam os pertences dos outros, principalmente os alimentos. Nima, neto de Noah, elabora um plano para expulsar os parasitas e, assim, se desenrola uma violenta guerra entre os reinos, no qual à força de um se contrapõe a estratégia do outro.
Como é inevitável em histórias deste tipo, em algum momento as duas narrativas irão convergir e se tornar uma só. Então, um romance que se anuncia como de FC hard acaba por se desenvolver como de fantasia heroica medieval. Em certo sentido, pode frustrar as expectativas de quem esperava uma história de colonização humana, mas o autor é competente em manter o interesse próprio do enredo, tornando esta mistura surpreendente, interessante.
Em todo caso, há uma clara inspiração em Arthur C. Clarke (1917-2008), a começar pelo nome do livro e, também por lembrar um de seus romances, A Canção da Terra Distante (The Songs of Distant Earth) (1986), em que também uma nave de gerações com milhares de pessoas chega num planeta há milhares de anos-luz da Terra, de forma inesperada e imprevista. Mas neste romance, o contexto é de FC o tempo todo, principalmente na dicotomia entre os valores da civilização terrestre e do povo nativo de Thalassa, enquanto que nas Crônicas da Estrela de Clarke, os conflitos são internos aos povos do próprio planeta Lukin.
As Crônicas da Estrela de Clarke é complementado por adendos, contendo explicações sobre os povos e reinos de Lukin, as características físicas e atmosféricas do planeta, da tecnologia de viagem espacial com inteligências artificiais, os aspectos culturais e linguísticos dos povos nativos, além de mapas com a geografia do planeta.
Recebi este livro por iniciativa do próprio autor, que o publicou com recursos próprios em formato digital. Já é o terceiro de sua carreira, os dois anteriores são A Virtuonírica Mundial, dividido em dois volumes: 1 – Origens e 2 – Entrementes – (2015), e Absolutos (2017) – também publicados com recursos próprios e vendidos em livrarias online. Ambos tem um conteúdo de FC mais explícito, o primeiro sobre os efeitos que uma tecnologia de comunicação onírica provoca, ao permitir a visualização e interação com os sonhos; e o segundo sobre a descoberta de um artefato misterioso na Lua.
Como se vê, Geraldo Boz Junior tem boas ideias e, em particular neste romance resenhado, demonstra capacidade de manter o interesse do leitor, com uma história criativa e cheia de surpresas, eivado ainda de situações de humor e com um senso naive que remonta às aventuras pulp das primeiras décadas da FC norte-americana do século passado. O que indica que este livro tem seu público leitor voltado, principalmente, ao segmento infanto-juvenil. Vale a pena ser conhecido, e sugiro ao autor que procure uma editora para publicar o livro de forma impressa. Vai chegar a mais leitores e valorizar a obra enquanto criação literária.
—Marcello Simão Branco
Agradeço muito pela resenha! É bom ler a análise de alguém com experiência em leitura crítica e sem vínculos emocionais com o autor. Aproveito apenas para informar que o ebook está a venda (R$20) no site da Editora do Gera (bit.ly/editoradogera), onde também se pode ler uma generosa amostra do livro antes de comprá-lo. Geraldo (autor)
ResponderExcluirOi Marcello, acabei de ler sua resenha, muito boa! Fiquei com vontade de ler o livro pela terceira vez, rsrsrs! O livro é muito envolvente fiquei presa nessa história. Neste tempo tão complicado que estamos vivendo o autor conseguiu me tirar da Terra e me lançar em uma grande aventura e um planeta fascinante.
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