O Planeta dos Macacos (La Planète des Singes), Pierre Boulle. Tradução de André Telles. 205 páginas. Rio de Janeiro: Pocket Ouro/Agir Editora, 2005. Lançamento original em 1963.
Este é o tipo de livro que de tanto conhecermos a história por meio dos filmes no cinema, série de TV etc., desestimula a leitura, pois espera-se que, a despeito de algumas mudanças, o enredo e as sequências sejam basicamente as mesmas. Apesar disso sempre tive curiosidade em ler a obra original deste clássico do cinema de FC e, se, de fato demorei décadas a fazê-lo por causa desta sensação, achei por bem finalmente tirá-lo do fundo da estante e lê-lo.
Quando lançado, O Planeta dos Macacos causou sensação, tanto pela originalidade da proposta como pela moldura de FC e, principalmente, pelas questões importantes que discute com relação ao que nos faz humanos, de nossa relação com os animais e de uma provocação sobre a questão do racismo. Por tudo isso e pela forma competente como foi escrito, O Planeta dos Macacos é um clássico da ficção científica, embora eclipsado pelo estrondoso (e justo) sucesso do filme de 1968. Pierre Boulle (1912-1994) já era um autor mainstream bem-sucedido, que antes havia publicado outro best-seller A Ponte do Rio Kwai (Le Pont de la Rivière Kwai) (1952), que também se tornou um clássico do cinema sob a direção de David Lean, em 1957.
Ao iniciarmos a leitura, de saída há uma surpresa porque a história toda é um relato manuscrito lançado dentro de uma garrafa que vaga pelo espaço, e é resgatada por um casal que viaja num veleiro. É um recurso clichê, e soa ainda mais exótico e inverossímil neste caso: uma garrafa e um veleiro, como se estivéssemos diante de uma narrativa marítima e não na imensidão infinita do cosmo, embora a analogia entre o mar e o espaço sideral seja recorrente em muitas obras.
Uma missão espacial é lançada da Terra até a estrela Betelgeuse, a belíssima supergigante vermelha, visível a olho nu, como a alfa da Constelação de Órion, situada há aproximadamente 720 anos-luz da Terra – no livro a distância é cravada em 300 anos-luz. Devido aos efeitos de dilatação temporal, provocado pela proximidade da velocidade da luz, os três astronautas chegam ao seu destino como se poucos anos tivessem passado para eles, e três séculos para os habitantes do nosso planeta.
No filme, os astronautas são militares (três homens e uma mulher) e no livro, civis: um cientista, seu assistente e um jornalista. Por comparação, me parece mais plausível a mudança realizada na versão cinematográfica. Ao chegarem a um dos planetas de Betelgeuse, nomeado por eles de Soror (irmã em latim), são surpreendidos ao descobrirem uma linda mulher, Nova – tal qual no filme –, e sua tribo de humanos.
Basicamente, a partir deste encontro os principais acontecimentos são reproduzidos na adaptação para o cinema, embora neste caso, como é de se esperar, com algumas diferenças e mais ação: os humanos são selvagens e não falam; a nave é perdida; muitos humanos são mortos ou capturados por um pelotão de gorilas fortemente armados, e levados à cidade símia, onde são enjaulados para servirem em experiências biológicas. É aqui que Ulysse Mèrou, o jornalista – equivalente ao Capitão Taylor do filme –, também capturado, conhece o casal de chimpanzés Zira e Cornelius, cientistas com a mente mais aberta em relação aos humanos. E o destino dos seus companheiros é semelhante ao do filme: um morre no confronto com os gorilas e o outro é lobotimizado e se torna tão estúpido como os nativos.
Um ponto interessante do livro é a descrição mais apurada da sociedade símia, que no filme é mostrado de forma superficial. Os macacos racionais e civilizados dividem-se em três espécies, cada uma funções específicas no interior da organização social e política. Os orangotangos representam os políticos e os religiosos, ou seja, os setores mais conservadores, responsáveis também pela educação pública; os gorilas são aqueles que exercem as tarefas de segurança e trabalhos mais brutos; e os chimpanzés são os equivalentes aos cientistas e profissionais liberais, setores de classe média com uma visão mais liberal e progressista, e com menos poder de decisão frente aos orangotangos e gorilas. No passado distante, os gorilas governaram com mão de ferro, e houve uma guerra para a libertação da tirania. Com a paz, foi estabelecido este equilíbrio de poderes e funções que, até certo ponto, revelou-se bem-sucedido.
Ulysse é visto com curiosidade, perplexidade e, finalmente, como uma ameaça à civilização símia, especialmente depois de Cornelius descobrir as ruínas de uma cidade construída pelos humanos num passado de milhares de anos, e do nascimento de um menino, a partir de seu relacionamento com Nova.
Descobre-se ainda que houve um processo evolutivo invertido em Soror pois, assim como na Terra, a civilização dominante e única era a humana, que subjugava os macacos. Contudo, devido a uma espécie de doença chamada de “preguiça cerebral” (!) a humanidade foi perdendo sua resiliência e discernimento racional, ao mesmo tempo que os macacos aumentaram sua capacidade de imitar as caraterísticas humanas. Desta forma, houve uma inversão, com o macacos se tornando inteligentes, conscientes de si e racionais e os humanos decaindo para uma condição irracional, a ponto de perderem a linguagem e sua capacidade de comunicação. Ao que parece, Pierre Boulle está a defender uma tese aqui, mas o argumento é apresentado de forma muito ligeira e incompleta. Afinal o que aconteceu com a humanidade de Soror? Que espécie de apatia, torpor, “preguiça cerebral” é esta? Uma doença, por certo. Mas não ficou claro.
A explicação, como se sabe, virá com a série de cinco filmes realizados entre 1968 e 1973 (e uma segunda extrapolação na série revisionista nos quatro filmes entre 2001 e 2017), no qual, grosso modo, a inteligência dos macacos é revelada a partir da fuga de alguns macacos após a explosão da Terra. Eles voltam no tempo e, entre outras consequências, se estabelece o costume de usar os macacos para trabalhos braçais e animais de estimação, depois de uma praga exterminar os cães e gatos. Seguem-se guerras, até que os primatas antropoides assumem o poder sobre seus antigos senhores. Na primeira versão cinematográfica está presente também uma contribuição relevante, ausente no livro, a da chamada Zona Proibida, uma região inabitável por conter resíduos radioativos advindos de um holocausto nuclear. Os chimpanzés, como Cornelius, intuem o que poderia ter provocado esta situação, mas o domínio do saber e da tradição controlado pelos orangotangos, impede o reconhecimento e divulgação do conhecimento. Em todo este desdobramento da primeira série no cinema, há uma vinculação central entre o contexto da Guerra Fria e as possíveis consequências da corrida nuclear.
No primeiro filme, a preservação que o Dr. Zaius, o líder dos orangotangos, ministro da Ciência e da Fé, faz da verdadeira origem dos macacos a partir da queda dos humanos tem um forte componente religioso, enfatizando a dicotomia entre o dogma da crença e a busca livre do conhecimento, só possível através da ciência. Corolário aqui é a discussão entre uma tendência criacionista, da tradição, contra uma evolutiva, da mudança.
Outro aspecto com o qual a obra costuma ser interpretada é de uma metáfora com o imperialismo europeu e, além disso, com o racismo, em especial aqueles historicamente praticados contra os negros. Mostrando uma situação de inversão do domínio branco e ocidental, haveria uma crítica à exploração, discriminação e violência. Mas creio que estas visões tenham sido mais vinculadas à época em que o livro foi escrito e, especialmente, quando do lançamento do primeiro filme, pois vivia-se os últimos anos das disputas por emancipação de colônias na África e à vigorosa emergência da luta pelos direitos civis, em especial nos Estados Unidos. Não que o racismo tenha diminuído, mas é que me pareceu que a interpretação evolucionista tenha ficado mais evidente ao ler a obra, levando em conta também o aspecto do relacionamento abusivo com relação aos animais, em especial com os grandes macacos, nosso parente mais próximo.
O livro é narrado com fluidez e segurança, embora curto, poderia ser mais longo, mostrando o bom escritor que Boulle foi. Este clássico da FC rendeu duas edições no Brasil. Esta com o qual escrevi esta resenha e uma mais recente, da Editora Aleph, de 2015, caprichada, com a inclusão de entrevistas com o autor e artigo de Braulio Tavares – recebeu uma segunda edição em 2019. Mas antes, em Portugal, foram lançadas edições, como as das editoras Ulisseia, Círculo de Leitores e Livros Unibolso, nas décadas de 1960 e 1970. Verdadeiras raridades, das quais tenho a fortuna de ter uma delas, a da Ulisseia, publicada em 1974.
Se o livro e o filme tem estruturas semelhantes, o final difere bastante. No romance, Ulysse, Nova e seu filho Sirius conseguem, com a ajuda de Zira e Cornelius, voltar à Terra, enquanto o filme mostra que, na verdade, devido a uma falha de navegação na trajetória da nave, eles pousaram, sem saber, na própria Terra, milhares de anos depois, dominada por uma civilização de macacos. Nada supera o impacto da cena final do filme, com Charlton Heston (Taylor) descobrindo a verdade chocante ao encontrar a cabeça da Estátua da Liberdade. É um dos momentos mais icônicos e impactantes da história do cinema. Mas o livro, em si, por tudo que comentei, nada deve à adaptação – que inclusive contou com a colaboração no roteiro do próprio Boulle, assim como nos filmes posteriores dos anos 1970 –, e também reserva no final, ao seu modo, uma surpresa de causar espanto.
—Marcello Simão Branco
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