Um dos mais explosivos temas de debate sobre ficção científica no Brasil do século 21 é a representatividade das mulheres no gênero. Mas isso não é de hoje. Desde os primeiros eventos do gênero no país, ainda nos anos 1980, já se trata do assunto, com painéis formados exclusivamente por escritoras e a produção de antologias feministas. A diferença entre o antes e o agora é que a vontade de criar uma discussão quantitativa parece ser mais importante que as obras em si. E assim, tudo aquilo de que realmente vale a pena falar fica para segundo plano. E isso é muito injusto com as autoras que tanto contribuíram para o amadurecimento do gênero, tanto no Brasil quanto no mundo.
Um dos muitos títulos recorrentes nessa discussão recente é O livro do juízo final, da escritora americana Connie Willis, publicado em 1992 mas que só chegou ao Brasil em 2017, com tradução de Braulio Tavares para o selo Suma das Letras, da editora Companhia das Letras, primeiro de uma série sobre as aventuras dos historiadores de Oxford.
Contudo, Willis não é uma novidade, mas uma saudosa conhecida dos leitores do gênero no Brasil. Isso porque, durante os poucos anos que a revista Isaac Asimov Magazine teve edição brasileira pela editora Record, nos anos 1990, a autora foi bastante publicada e muito bem avaliada pelos leitores. Esperava-se, a época, que a própria editora lançasse romances dos autores vistos ali, mas isso praticamente não aconteceu, com exceção de Charles Sheffield, outro ótimo e frequente autor da IAM que teve os livros Maré de verão e Divergência traduzidos pela Record. Com o pranteado fim da revista, em sua edição 24, muitos desses excelentes autores, que estavam na linha de frente da fc mundial do final no século, acabaram esquecidos e só agora voltam a pauta.
Willis tem uma fc emotiva e introspectiva, e essas características estão presentes em O livro do juízo final, que conta com personagens muito bem elaborados, envolvimentos profundos e sem pieguismo, e uma narrativa naturalista que deixa tudo muito crível, por mais absurdo que seja. Lembro-me vividamente da novela "O último dos winnenbagos", na qual um casal de idosos viaja por estradas americanas futuristas em um anacrônico motorhome.
O título O livro do juízo final é algo enganoso. Enquanto eu carregava o livro por aí, durante a leitura, muita gente se espantava e acreditava que se tratasse de um livro religioso e escatológico. O fim do mundo é um tema que apavora a maior parte das pessoas mas, ainda que seja um título muito bom e adequado, não anuncia perfeitamente o que o texto traz.
A história acompanha a viagem de Kivrin Engle, estudante da universidade de Oxford – provavelmente uma doutoranda ou algo do gênero – à idade média, mais exatamente ao ano de 1320, a partir de uma tecnologia de viagens no tempo que parece bastante comum em 2050, época em que parte da história se passa. O livro começa já nos preparativos finais da viagem, que não é consenso entre os doutores ligados ao departamento de História da universidade. Sr. Dunworthy, uma espécie de mentor de Kivrin, discorda do método apressado do departamento Medieval que está adiante da missão e tenta suspender a viagem por todos os meios, mas é voto vencido. Willis desfralda aqui o ambiente conflituoso que caracteriza o campo acadêmico em que os doutores lutam por espaço para suas teorias, sem medir as consequências de seus atos. Esse é o tema favorito da fc desde Frankenstein e aqui segue mais ou menos o mesmo caminho. Porque, é claro, alguma coisa vai dar muito errado.
Pouco depois da máquina ser acionada, uma virose altamente contagiosa surge na Londres futurista e o foco parece ser justamente o laboratório do qual Kivrin partiu. Enquanto os cientistas e técnicos ligados a missão adoecem um após o outro, com febres altas e delírios, Kivrin segue sua incursão ignorando o que acontece em seu tempo. Porém, como ela também havia contraído a doença, isso vai trazer uma série de imprevistos à missão e pode mesmo levá-la ao completo desastre. Sua esperança – que ela na verdade não tem conhecimento – é a fidelidade canina de Dunworthy, o único que parece realmente interessado em resgatar Kivrin de sua missão desafortunada. Porque a doença não permitiu que todos os parâmetros de segurança fossem implementados e, a cada hora que passa, as chances de trazer Kivrin de volta ficam ainda piores.
Temos então, duas narrativas paralelas: uma em 2050, quando Dunworthy move céus e terra para resgatar Kivrin de uma tragédia da qual ele não duvida um só minuto, e outra em 1320, em que a pesquisadora convive numa paupérrima aldeia medieval igualmente assolada por uma virose ainda mais mortal.
Willis demonstra habilidade narrativa, tecendo uma trama muito bem ajustada que peca apenas em um aspecto: não previu o impacto da telefonia móvel nessa sociedade do futuro. Afinal, numa época em que se pode viajar com segurança pelo tempo ao ponto de ser rotina na maioria das instituições, era de se imaginar que a sociedade contasse com meios de comunicação um pouco melhores que a telefonia com fio. Talvez, em 1992, ainda não fosse possível antever o fenômeno, mesmo nos EUA, então é necessário, para o bom aproveitamento da história, que o leitor releve esse detalhe, mesmo que não seja assim tão pequeno.
Tirando esse obstáculo do caminho, trata-se de uma história de personagens apaixonantes com os quais sofreremos emocional e fisicamente, instalados nas duas épocas de forma muito bem estruturada. É possível visualizar tanto o campus de Oxford e seus arredores, como toda a geografia e arquitetura da vila medieval, sem que se perceba como Willis faz isso, uma habilidade dominada por poucos. Só por isso, mais a saudade da autora que pode ser enfim aplacada em nós, já vale a leitura. Mas há muito mais o que se aproveitar. Altamente recomendável.
— Cesar Silva
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