sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

O Teorema das Letras


O Teorema das Letras, André Carneiro. Capa: Claudio Takita. Posfácio de Ramiro Giroldo. 166 páginas. São Paulo: Devir, Coleção Pulsar, 2016.

Este é o quinto livro de contos publicado pelo autor, o único de forma póstuma, já que ele faleceu em novembro de 2014.
Assim, a coletânea reúne a parte final dos seus escritos em prosa, o que mostra a vitalidade e longevidade de sua criação literária, iniciada em 1949 com o volume de poesias Ângulo e Face. Também em termos de ficção científica é o autor brasileiro que escreveu por mais tempo, já que seu primeiro livro do gênero, a coletânea Diário da Nave Perdida, é de 1963.
Mas O Teorema das Letras é mais do que o encerramento de uma carreira longa e reconhecida no campo da FC – no Brasil e no exterior –, e na poesia. Suas cinco histórias exploram de forma arrojada, surpreendente e mesmo incômoda questões relativas à sempre problemática condição humana: sua solidão, dificuldade de conexão com o outro, necessidade de expressar a liberdade como forma de afirmação de uma humanidade mais autêntica. Ainda mais se confrontada com súbitas e desnorteadoras mudanças sociais a partir de inovações tecnológicas ou a partir de regimes políticos não democráticos. Esta última questão particularmente aguda na vida de Carneiro, um libertário humanista em meio a uma sociedade tão conservadora como a brasileira.
Como bem observa Ramiro Giroldo no posfácio, O Teorema das Letras segue a tendência de seu livro anterior, a enorme coletânea de 27 contos Confissões do Inexplicável (2007), “com contos onde se intensificam a indefinição entre o real e o imaginário e a incerteza quanto ao narrado. A narrativa pode se reconstruir e se fazer outra de um momento a outro, abalando a certeza que a mera observação dos fatos possa levar à compreensão deles – os próprios sentidos a decodificar o mundo ao redor são indignos de confiança (...) estamos em um terreno de incertezas e paradoxos.”
Que fique claro, portanto, de que não estamos diante de uma prosa que prime pela convencionalidade e respostas facilitadas para o leitor. Quem conhece André Carneiro de outras obras já parte deste princípio, mas mesmo assim ele não deixa de soar algo insólito nas nuances que vão se insinuando a cada frase de seus contos. Assim, exige-se do leitor uma postura aberta ao novo e improvável, uma expectativa de estranhamento sempre à postos. Mas longe de tornar a leitura difícil é um estímulo, um desafio intelectual frente às situações incertas e ambíguas apresentadas, muitas vezes, em cada história.
Os dois primeiros contos “Alice e Roberval” e “Zinska” são os menores e servem como uma espécie de prólogo a esta complexidade temática que se assume como mais desenvolta nas três noveletas posteriores.
“Alice e Roberval” mostra um futuro em que é possível fazer predições sobre o futuro através dos cálculos de um computador. Mas ao contrário da psicohistória de Isaac Asimov (1920-1992), vista em sua série Fundação, em que a estatística está a serviço de predizer o comportamento coletivo de grandes populações, aqui se antevê o que poderá acontecer com a vida individual do consulente. É como se a matemática desnaturalizasse o esoterismo místico ao racionalizar o porvir, das dúvidas e ansiedades no rumo de sociedades ou na vida de pessoas.
Em “Zinska” temos a mesma toada da materialização tecnológica a tentar responder necessidades humanas. Estamos diante da construção de uma androide com capacidades telepáticas e seu relacionamento com os cientistas da empresa onde foi criada. Neste ambiente supostamente racional e asséptico se sobressai a inveja, a intriga e o ciúme em torno de Zinska e de liderança na empresa. No limite, homens lutando por atenção sexual e disputa de poder. Nada mais primevo, e humano.
A noveleta seguinte é a mais desconcertante do livro. “From Veronika Volpato” apresenta uma narrativa misteriosa sobre um casal que recebe algumas missões previamente desconhecidas por eles. Supõe-se trabalharem para alguma organização secreta ou clandestina a lutar contra um regime político opressor. Mas isso não fica propriamente claro. Lugares, pessoas e fatos se sucedem, e ainda mais enigmáticos com as mudanças de nomes do casal – uma peculiaridade recorrente em sua obra fruto de sua própria experiência pessoal durante a ditadura militar.
Para ilustrar como as impressões se desfazem mais adiante sai (ou perde importância) a possibilidade de atuarem junto a uma organização com fins políticos, para participarem da experiência de criação de um novo mundo. Uma nova realidade a ser vivida por seres humanos emancipados, mutantes. É uma história fascinante, tanto pelo suspense onipresente, pela sensação de estar sempre a faltar algo à espera de uma explicação, que nunca vem plenamente. Foi uma história que li e reli, me abrindo a cada leitura novas interpretações sobre o transcurso e o desdobramento final.
E o que dizer de “Sonho Lúcido”? Rodolfo anda triste e sem muito prazer nas coisas da vida. Para escapar, sonha. Faz do sonho uma atividade ansiada, talvez para explicar os seus problemas existenciais. Anota os sonhos logo que acorda, lê livros sobre psicanálise para entender mais sobre o assunto e a si mesmo. E é quando surge Ruth, uma mulher misteriosa por quem se apaixona. Vem não se sabe de onde, nem o que faz, nem para onde vai na sua ausência. Pois ela passa a dominar sua vida, com resultados perturbadores. Mais uma história incomum e aberta a muitas interpretações.
A última história é “O Bairro dos Tatus”. Um rapaz se muda para o tal bairro. Na verdade se refere aos tatuadores e não ao animal rastejador, como ingenuamente ele chegou a pensar.
Depois de fazer uma tatuagem de um pterodáptilo logo abaixo do umbigo, ele passou a ser desejado por várias mulheres – que homem não gostaria disso? –, pondo à prova seu relacionamento com Nissa, sua namorada. Mas também em relação à sua própria vida, depois dela sofrer um acidente automobilístico grave. Uma narrativa forte e triste, que procura refletir sobre as consequências voluntárias e involuntárias de nossos atos.
Como já disse o livro se encerra com o pósfácio de Ramiro Giroldo, professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). Em “André Carneiro entre os Quânticos da Incerteza”, ele, que também defendeu um mestrado sobre a a distopia na obra de Carneiro,[1] na verdade é bem mais do que um texto de encerramento do livro. Fazendo um balanço cronológico e, por meio, dele, dos temas e características da obra de Carneiro, realiza um trabalho de análise literária não menos que notável. Pelo conhecimento, pela sutileza de suas análises e contextualização da condição do autor frente à ficção científica, à poesia e à literatura brasileira. É, desde já, um dos trabalhos mais completos sobre um autor de ficção científica escrito em língua portuguesa, uma referência para quem for estudar, principalmente, a vida e a obra de André Carneiro e, por extensão, a ficção científica brasileira.
Sabe-se que na última década de sua vida Carneiro sofreu com problemas de saúde, especialmente a visão. Com glaucoma, tinha apenas 10% restante e, mesmo assim, e por meio de aparelhos que amplificavam sua leitura, não esmoreceu. Continuou escrevendo e com qualidade e uma liberdade temática talvez ainda mais ousada. Isso só valoriza ainda mais O Teorema das Letras, uma obra que inspira e desafia, como poucas em nossa FC, a inteligência e a imaginação do leitor.
– Marcello Simão Branco




[1] Publicado como Ditadura do Prazer: Sobre Ficção Científica e Utopia, pela Editora UFMS, 2013.

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