Infinito em Pó,
Luís Giffoni. Belo Horizonte: Editora Pulsar, 238 páginas. Lançado
originalmente em 2004.
Este romance de ficção científica surgiu em fins de
2004 quando o mercado editorial brasileiro ainda estava avesso à publicação de
ficção científica. Recebeu, além disso, uma resenha favorável no caderno ‘Prosa
e Verso’, do jornal carioca O Globo, um dos principais do país.
Talvez isso se explique pelo fato de Luís Giffoni, ser
um um autor razoavelmente experimentado, assinando outros romances e recebendo
premiações prestigiosas, como os da Academia Paulista dos Críticos de Arte
(APCA), Bienal Nestlé, e duas indicações para o Prêmio Jabuti, o principal da
literatura nacional.
Com tais referenciais recebi o livro enviado pelo
próprio autor com bastante expectativa. De que a obra pudesse acrescentar qualidade
e visibilidade à ficção científica, dois elementos de que ela tanto carece
entre nós. O tema, de saída, já ajuda, é dos mais interessantes, a temática da
nave de gerações, que parte da Terra em direção às estrelas numa viagem muito
inferior à da luz. E que por isso, só deverá ser testemunhada pelos
descendentes da tripulação original, milhares de anos depois.
Lamento dizer, contudo, que o livro decepciona. Embora
seja bem escrito e imerso de metáforas inspiradas, argutas observações e
ironias sobre a condição humana e em particular sobre a racionalidade de uma
missão como esta, o livro se enfraquece e se torna um fastio pela ausência de
drama, de um enredo trabalhado. Uma narrativa que fosse mais fluente,
palatável, que apresentasse e desenvolvesse tramas e problemas próprios e
inerentes à operacionalidade da missão e os inúmeros perigos que ela
potencialmente pode apresentar. Enfim, falta ao romance vida própria.
Há algumas especulações interessantes das, digamos,
consequências sociais de avanços científico-tecnológicos. Como por exemplo, no
desenvolvimento de seres humanos artificiais criados apenas para o prazer
sexual dos tripulantes. Mas são secundárias dentro da trama, apresentadas mais
como curiosidades, do que como possibilidades dramáticas a serem desenvolvidas.
Não que não haja um enredo. Há e já começa com um
recurso metalinguístico que dilui os problemas vindouros, pois se sabe de
antemão, em suas primeiras páginas, que, enfim, de um modo ou de outro, a
missão teve êxito. Isso porque o livro se conta por meio de um relato de um
historiador de um dos planetas habitados de Alpha Centauri. Então, já no
começo, Giffoni se impõe um desafio. Qual? De contar uma história forte o
suficiente para dissipar a perda de suspense, que a revelação inicial encerra.
Contudo, o autor não perde tempo com este suposto esforço em contar de forma
vibrante – talvez épica, por que não? –, como se deu a trajetória em direção ao
sistema estelar situado a pouco mais de quatro anos-luz da Terra.
Já no primeiro capítulo se inicia um denso mergulho
reflexivo – pontificado pelo óbvio recurso da primeira pessoa do singular –, no
qual os principais tripulantes da nave vão alternando suas dúvidas e divagações
existenciais sobre a razão de estarem ali e do destino que os aguarda.
O livro, página após página, capítulo após capítulo,
com tal imersão psicológica torna-se ‘pesado’, difícil de ser lido com uma
mínima fluidez e prazer narrativo. E as tais introspecções existenciais são
muito semelhantes entre si, na voz de cada tripulante, causando até uma certa
ambiguidade sobre quem é realmente quem,
para além dos papéis hierárquicos de cada um na nave.
Para se ter uma ideia da ‘densidade’ da narração,
temos somente na página 98 a primeira sucessão de diálogos continuados em torno
de um problema prático.
Ao seu modo intimista, a narrativa vai de forma
paulatina mostrando alguma ação e tensão própria, saindo desta espécie de
‘inércia psicológica’. Assim é que dois fatores externos ganham relevo. O
primeiro é uma guerra que viceja na Terra, envolvendo o governo mundial
ditatorial e grupos rebeldes que tentam derrubar o regime. Opositores do
planeta e de outras colônias humanas instaladas em outros planetas e luas do
Sistema Solar. O segundo é a revelação de que a nave, Unity, leva consigo um
mini-buraco negro, o que pode, potencialmente, destruir a nave e levar ao fim
da missão.
O grande desfecho para as duas situações se insinua a
partir dos últimos capítulos, mesclados com as repetitivas elucubrações. Na
página 174, temos as frases: “Envolta
por tanta conjectura...” e “Chega de divagar...” Ora, embora estejam dentro do
contexto da história, serviu a mim, na condição de leitor, como uma espécie de
confissão do próprio autor sobre o exagero de sua opção de estilo. Outro
exemplo emblemático se dá à página 200:
“As
dúvidas são mesmo meu grande vício. Questiono por defeito de fábrica, meu selo
de origem descontrolada. Quando em paz, imagino problemas para me perturbar,
com frequência chuto o incômodo para a frente e desestabilizo a rotina. Será
que meu gesto enriquece a vidinha a bordo?”
Apesar da sucessão de capítulos muito parecidos em
suas divagações, foi divertido constatar a homenagem de Giffoni a vários
escritores de ficção científica ao longo do texto. Pois vários deles foram
retratados como tripulantes, cientistas, artistas e políticos. Nomes como:
Arthur C. Clarke, Robert A. Heinlein, Kurt Vonnegut, Aldous Huxley, Murray
Leinster, William Burroughs, Doris Lessing, Ursula K. Le Guin, Walter Miller,
Jr, Edgar Allan Poe, Hugo Gernsback, tem seus sobrenomes emprestados a
personagens secundários. E sim, há brasileiros: Fausto Cunha e Jorge Luiz
Calife, ou melhor George Califa!, que foi o nome do personagem que se refere ao
escritor carioca.
Outra expectativa quanto a este livro é o do diálogo
que ele poderia estabelecer com outras obras sobre o mesmo tema. Em termos
arquetípicos o melhor romance sobre nave de gerações da história da ficção
científica é Nave-Mundo (Non-stop), do inglês Brian Aldiss, de
1958. Milhares de anos depois de iniciada a viagem uma distante geração de
tripulantes vive em regiões diferentes e isoladas da nave, sem nem ao menos ter
consciência de que estão em um vazo que singra o espaço sideral. Um terrível
acidente ocorrido há muito tempo e a manutenção de um comando autocrático,
sustentado por uma religião criada para legitimar o poder, mantém os
tripulantes alheios à sua origem e ao seu destino. Temos um equilíbrio virtuoso
sobre a aventura épica e única que representa uma missão deste tipo e as
idiossincrasias humanas nela envolvidas, além das surpresas e perigos que
inevitavelmente põe em risco e remodela todos os objetivos inicialmente
planejados. Enfim, um clássico.
Outro que pode ser elencado é o romance As Canções
da Terra Distante (The Songs of Distant Earth, de 1986), do também
inglês Arthur C. Clarke. Com a proximidade do fim da Terra, a nave Magalhães é
enviada para um planeta anos-luz distante de casa. Ao atingirem o destino
programado, os descendentes da viagem inicial descobrem que o tal planeta já
abriga uma civilização inteligente. Taí um problema fascinante a ser
enfrentado. Pena que Clarke não estivesse particularmente inspirado em
desenvolver a dramaticidade que o enredo suscita.
No Brasil podemos citar ao menos dois: Horizonte de Eventos (1986), de Jorge Luiz Calife – segundo livro de sua trilogia
‘Padrões de Contato’ – no qual a nave de geração não é propriamente o tema
principal, mas compõe com outros – e o romance Projeto Evolução (1990),
de Henrique Flory, no qual uma missão é montada às pressas ao se descobrir que
o Sol se tornará em pouco tempo uma nova.
Em termos comparativos, Infinito em Pó, tem o
seu diferencial. Menos pelo que traz de novo ao tema, do que pela opção de
enveredar pelos meandros das reflexões existenciais dos personagens. Sem
dúvida, uma opção interessante e que acrescenta um novo ponto de vista. O que
compromete, porém, é o excesso.
É possível dizer que Infinito em Pó seja um
livro literária e formalmente bem acabado. Que tenha o seu público próprio, pois
a prosa de Giffoni é boa e bem articulada. Mas talvez tenha faltado à obra, uma
busca por um equilíbrio entre o aspecto literário e intimista – tão valorizado
pelo mainstream em geral –, com uma literatura que prioriza mais as ideias
e o desenvolvimento do enredo, que é uma marca característica da ficção
científica.
–
Marcello Simão Branco