Os
Imortais (The Immortals), James Gunn. Tradução: Teresa
Curvelo. Capa: autoria não identificada. 205 páginas. Rio Maior: Galeria
Panorama, série Antecipação, n. 42, Portugal, sem data. Publicação original de
1962.
Às vezes chegamos a um
livro da forma mais inesperada. Na edição 261 do fanzine Juvenatrix (agosto de 2024), o editor Renato Rosatti publicou um bom
artigo sobre a série de telefilmes produzida pela rede de TV norte-americana
ABC, entre 1969 e 1975, a “ABC Movie of the Weeks”. Curioso, fiz uma pesquisa
posterior e descobri o telefilme The
Immortals (1969), que me chamou a atenção por ser um piloto de uma série
com 15 episódios, baseado no romance homônimo de James Gunn (1923-2020),
prestigiado escritor e acadêmico norte-americano.
O filme está disponível
no Youtube, com acesso a legendas em português – assim como, aliás, boa parte
dos 264 filmes da série da ABC. Vi, gostei e fiquei a pensar se a obra não
teria sido publicada em língua portuguesa. Ora, não só foi, em Portugal, como
eu tinha o livro! Um caso típico de serendipity,
expressão inglesa para achados fortuitos e inesperados.
Os
Imortais aborda um mundo futuro em que, de maneira também
fortuita, se descobre a possibilidade da vida eterna. Após um bilionário idoso
receber uma transfusão de sangue, ele não só se recupera, mas também
rejuvenesce. Perplexo, o doutor Russell Pearce, procura saber quem foi o
doador. E após examiná-lo, constata que Marshall Cartwright possui uma
substância no sangue, a globulina gama, que tem a capacidade de resistir a
qualquer doença. O corpo dele produz anticorpos contra a própria morte. O seu
sistema circulatório é constantemente renovado, permitindo que as células não
morram jamais. Através de uma simples transfusão, o corpo de uma pessoa doente
pode ser curado. Mas o período na receptora é de apenas 30 dias, de forma que
ela tem de receber novas transfusões ao fim de cerca de um mês.
No filme, o bilionário
descobre Cartwright, o aprisiona, mas este foge e é perseguido pelos
brutamontes do bilionário. Ao que consta, o seriado, que durou apenas uma
temporada, mas foi indicado a um Prêmio Emmy em 1970, segue a mesma linha. Pois
é baseado, justamente, na primeira das quatro noveletas que formam o romance fix-up, isto é, o que os
norte-americanos chamam para um conjunto de histórias em sequência, baseadas
num mesmo universo ficcional.
A primeira é “Novo
Sangue” (New Blood), publicada em Astounding
Science Fiction, em outubro de 1955. Narra, basicamente, o mesmo enredo do
seriado citado acima, apenas que Cartwright não se deixa aprisionar, e nem
foge, simplesmente desaparece ao descobrir que tem o dom da imortalidade, a não
ser que sofra algum acidente grave. Cinquenta anos depois se passa a segunda
história “Doador” (Donor), vista primeiro em Fantastic Stories of Imagination (novembro de 1960). Num Instituto
Nacional de Pesquisa, se gasta bilhões de dólares para descobrir o paradeiro de
Cartwright e seus possíveis filhos, bem como uma maneira de sintetizar a
substância sanguínea que produz o rejuvenescimento. Mas tudo é mantido em
segredo, até que um dos pesquisadores descobre o paradeiro de uma possível
herdeira do imortal original. No início ele procura barganhar, mas depois
escapa à procura de Bobs, a garota imortal. Esta é talvez a melhor história,
com mais ritmo e suspense, bem como com os personagens mais interessantes. E
assim, é de se lamentar que com o final, fique em aberto o destino do
pesquisador e da garota.
Situadas décadas à
frente, as duas últimas novelas enveredam por um caminho sombrio, ao mostrar as
consequências da descoberta da imortalidade na sociedade como um todo. Em
“Médico” (No So Great on Enemy/Medic), publicada originalmente em Venture Science Fiction (julho de 1957),
acompanhamos um médico residente que é chamado para socorrer um paciente num
edifício abandonado. Lá, ele o encontra sob os cuidados de uma garota cega, e
vem a saber que, na verdade, o doente é ninguém menos que o doutor Russell, que
mesmo sem receber o elixir atingiu uma idade bem avançada. A história mistura o
atendimento em si com as reflexões do jovem médico sobre o mundo em que vive.
Sua angústia é em saber se receberá o dom da imortalidade, possível de ser
obtido por médicos que alcancem sucesso em sua carreira. Mas isto não passa
apenas por ser um bom profissional, mas de participar do esquema de poder que
permite privilégios ao estamento dos ricos e poderosos, os que se beneficiam
com a imortalidade.
Na última novela, “O
Imortal” (The Immortal), vista primeiro em Star
Science Fiction Stories (n. 4, 1958), o mundo se consolidou numa distopia.
Os centros das grandes cidades estão abandonados e em ruínas, apenas habitados
por operários que mantém a produção de alimentos e remédios para os poderosos,
que vivem nos subúrbios em fortalezas fortemente armadas, os imortais. Eles
investem sua fortuna para manter a produção sintética da substância sanguínea
milagrosa, e apenas alguns profissionais de saúde e o entorno dos que os mantém
em segurança também se beneficiam. A enorme maioria restante vive em condições
deploráveis, em meio à sujeira, doenças e violência, e recorrem a um gigantesco
hospital para manterem sua precária condição de saúde e servirem de doadores de
órgãos, num lucrativo mercado, tanto legal como ilegal de tráfico para
transplantes.
Nesta história,
acompanhamos a missão do médico Harry Elliot para levar uma mensagem urgente ao
governador. Numa travessia muito perigosa, sujeita à violência de caçadores de
pessoas para extração de órgãos, e doenças derivadas da condição de sujeira e
miséria, ele é acompanhado de um médico cego – o doutor Russell que doou seus
olhos para a filha, da história anterior –, um jovem que vem a ser o seu neto e
uma adolescente, que trará uma revelação importante que mudará o destino da
missão.
É interessante notar que
paira entre os Cartwrights espalhados pelo país afora uma situação inversa da
de um vampiro. Pois este precisa do sangue das pessoas para sobreviver
eternamente. No livro, são as pessoas que precisam do sangue mutante para
alcançar a vida eterna. O diferente é perseguido e não persegue, como o
vampiro, mas ambos tem de viver de maneira oculta, como numa maldição.
Contudo, é toda a
sociedade que sofre. A possibilidade de alcançar a vida eterna degenera as
relações sociais, exacerbando o individualismo e o egoísmo, instaurando a
lógica do poder de quem pode mais em pagar pelo benefício. Assim, todo o
sistema econômico passa a girar em torno desse interesse, instaurando uma
clivagem entre idosos ricos e sedentários e o restante da população, que se
torna doente devido às condições insalubres em que vive, e no qual mal pode
pagar pelos serviços médicos, inteiramente voltados à manutenção do privilégio
dos velhos que os mantém.
Apesar de ser um livro
que junta histórias previamente autônomas, o romance é bem estruturado,
tornando-se progressivamente complexo, mais em termos coletivos do que
individuais. No fundo, Gunn faz uma reflexão perturbadora dos possíveis efeitos
que uma descoberta como essa poderia trazer para a humanidade, com instigantes
observações sobre a ética médica em meio a um verdadeiro sistema econômico anarco-capitalista,
que desumaniza as pessoas, reduzindo tudo à lógica utilitária do lucro. A
anomia total da sociedade brutaliza as relações humanas, e a falência do
Estado, completamente reduzido a uma condição de prestador de serviço à casta
dos endinheirados, reprime a todos que ousem questionar ou lutar contra esta
distopia.
A imortalidade é um dos
temas mais recorrentes da FC, uma das inspirações básicas do pensamento
especulativo, o elixir da vida, da saúde perfeita e da juventude. Mas, como mostra
a maioria das obras, nem isso é perfeito, tanto no plano individual (a falta de
objetivos e perspectivas numa vida sem destino), como no coletivo (com a
provável apropriação do recurso como fonte de poder e discriminação). Lembro,
rapidamente, de obras como o monumental Amor
Sem Limites (Time Enough for Love;
1973), de Robert Heinlein; o instigante Regresso
à Vida (Recalled to Life; 1962),
de Robert Silverberg, bem como sua novela premiada “Born with the Dead” (1974);
o clássico Estação de Trânsito (Way Station; 1963), de Clifford Simak, e
o brasileiro Padrões de Contato
(1985), de Jorge Luiz Calife, com a heroína Angela Duncan tornada imortal por
ação da Tríade, uma superinteligência extraterrena. Além disso, o romance Horizonte Perdido (Lost Horizon; 1933), de James Hilton, duas vezes adaptado ao cinema
(1937 e 1973), e o filme Zardoz
(1974).
Já conhecia Gunn de outro
romance fix-up bem crítico, Os Vendedores de Felicidade (The Joy Makers; 1961) – sobre uma
sociedade hedonista estimulada por drogas (leia a resenha aqui) – e este Os Imortais segue na mesma toada, sendo, provavelmente, a mais
pessimista obra sobre as prováveis consequências sobre um dos maiores desejos do
ser humano.
Na prática, é crível
pensar que, de fato, a imortalidade seria para poucos, e a maioria teria uma
condição de vida piorada e mortal. O que poderia ser uma benção se revelaria
uma maldição que condenaria a todos, inclusive os privilegiados, restritos a
uma vida isolada e cheia de limitações. Para se atingir eventualmente a
imortalidade, seria preciso antes mudar o sistema de valores dos seres humanos,
com mais fraternidade, solidariedade, amor. Conceitos vinculados à igualdade
plena, tanto em termos materiais, como filosóficos. Mas à parte esta
idealização, tememos a finitude porque a vida é tudo o que temos, e não sabemos
como será – se é que será – quando ela deixar de existir. Em meio ao desejo e à
esperança, talvez trocássemos o medo da morte, por uma eternidade vivida entre
a angústia e o vazio existencial.
—Marcello Simão Branco