sábado, 4 de outubro de 2025

Como aprendi a amar o futuro

Como aprendi a amar o futuro: Contos solarpunk
Francesco Verso & Fabio Fernandes, orgs. 350 páginas. São Paulo: Plutão, 2023.

É incrível que não estejamos falando da antologia Como aprendi a amar o futuro desde o seu lançamento há dois anos. Pois trata-se da mais expressiva novidade no ambiente da fc desde o surgimento do cyberpunk, nos anos 1980. Porque ela é estranha e um pouco assustadora, como, aliás, toda a fc deveria ser. 
Desde a publicação em 2012 da antologia Solarpunk: Histórias ecológicas e fantásticas em um mundo sustentável, pela Editora Draco, ficou a impressão que o subgênero ali proposto não passava de uma variação ao cyberpunk com tecnologias verdes. Dizia-se que o solarpunk propunha uma ficção que apontava para um futuro no qual a humanidade daria certo, escapando do apocalipse e da distopia.
Se fosse mesmo isso, seria uma fc ingênua e equivocada, uma elegia a tecnocracia futura na qual todos os problemas causados ao meio ambiente planetário pela tecnologia seriam resolvidos, vejam só, pela própria tecnologia. Há, de fato, muita gente que pensa assim: para quê preservar o mundo hoje se a tecnologia irá nos salvar amanhã?
Bem, não é o que sugerem os treze contos e os três ensaios reunidos nas 350 páginas de Como aprendi a amar o futuro: Contos solarpunk, antologia organizada pelos pesquisadores Francesco Verso (Itália) e Fabio Fernandes (Brasil), publicada pela Plutão Livros em 2023.  
Para os autores presentes na antologia, a concepção do solarpunk não é, de forma alguma, positivista ou utópica.  Pelo contrário, é bastante pessimista, porque reconhece que o ponto sem volta já foi ultrapassado e o desastre ambiental é inevitável. Na verdade, já estamos vivendo suas consequências e não há como escapar, a não ser que aconteça alguma coisa muito radical e subversiva.
Tratam-se de histórias em que pessoas comuns tomam para si a tarefa de construir uma nova forma de viver num mundo devastado pela poluição e pela crise ambiental causadas pelas corporações e pelas elites que continuam fazendo o que sempre fizeram. Trata-se de uma ficção engajada, que pretende mostrar alternativas de sobrevivência dentro desse inevitável futuro ambiental destroçado. Uma fc politicamente militante, mais social e menos individual, que também discute aspectos ligados a diversidade étnica, cultural, de gênero e de pessoas com deficiência. Uma ação de guerrilha tecnológica, na qual grupos comunitários assumem a responsabilidade e o controle de sua sobrevivência em meio ao caos ambiental, a revelia das decisões de governo, que nos colocaram nessa enrascada para começo de conversa. 
Nas 350 páginas da antologia, textos de várias procedências, vindos de Argentina, EUA, China, Austrália, França e Espanha: "Empatia bizantina", de Ken Liu, "O zelador do Farol", de Andrew Dana Hudson, "Beton betularia", de Maria Antònia Martí Escayol, "Omnia sol temperat", de T. P. Mira-Echeverría e Guillermo Echeverría, "Contaminações", de Sylvie Denis, "Com uma bicicleta espacial vai-se a qualquer lugar", de Ingrid Garcia, "A terra-corpo", de Ciro Faienza, "A força da serpente é a força da gente", de Brenda Cooper, "Falácia efetiva", de Qiufan Chen, "O rancho espiral", de Sarena Ulibarri, "Linha de frente", de Gustavo Bondoni, e os brasileiros "Nina e o furacão", de Ana Rüsche e "Presságio de solidão", de Renan Bernardo. Também traz ensaios, assinados por Fabio Fernandes, Andrew Dana Hudson e Francesco Verso, conceituando o subgênero, citando precurssores e estabelecendo seus protocolos, tudo muito didático, embora o texto de Hudson tenha um quê de manifesto.
O time de tradutores também é grande: Jana Bianchi, Fernanda Castro, Morgana Feijão, Marina Scardoelli, Lina Machado, Thiago Ambrósio Lage, André Caniato. A capa traz um trabalho de Sávio Araújo.
Não que inexistam textos na fc tradicional que esbarram no tema, como os de Kim Stanley Robinson, que é citado nos ensaios publicados. No Brasil, escritores como Simone Sauressig ("O cuco de samaúma", em Universo Pulp: Multipunk, Avec, 2022) e Daniel Galera ("Tóquio" em O deus das avencas, Companhia das Letras, 2021) aproximaram-se do tema, mas a eles faltava o componente explosivo que abunda em Como aprendi a amar o futuro.
A edição só está disponível em ebook, e dá para ler de graça emprestando um exemplar na BibliON, aplicativo oficial da Secretaria de Cultura do Governo do Estado de São Paulo que, aliás, foi como eu li. 
Vale a pena conhecer a antologia e entender o que realmente vem a ser esse tal de solarpunk. É para mexer com os brios e dar vontade de começar sua própria guerrilha contra o capitalismo agora mesmo.
A luta continua!
— Cesar Silva

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

As Mulheres dos Cabelos de Metal

 



As Mulheres dos Cabelos de Metal, Cassandra Rios. Capa: sem autoria. 162 páginas. São Paulo: Hemus, 1971.

 

Se a ficção científica no Brasil ainda é algo à margem do centro de produção da cultura nacional, há autores mainstream ou de outros gêneros que também a praticaram, mas é como se a obra de FC fosse ainda mais obscura, até para os fãs e especialistas. É o caso de Cassandra Rios (1932-2002), autora muito marcada por uma obra contestadora dos costumes e da sexualidade, através do erotismo e do lesbianismo. Além de militante homossexual, com o qual pagou um preço muito alto, sendo a escritora brasileira mais perseguida durante a ditadura militar.

Assim, ela surpreendeu com As Mulheres dos Cabelos de Metal, uma inusitada história de invasão alienígena comandada por uma civilização de mulheres. Por meio de um matriarcado, elas são mais inteligentes que os homens, reduzidos à força física e tarefas manuais. As mulheres tem corpos esculturais e cabelos compridos de metal que, ao toque, emite um som musical relaxante. De repente, suas naves surgem nos céus e desembarcam na Terra, depois de um período secreto para estudar os costumes da humanidade. Elas seduzem e matam os homens de forma implacável. E para completar a missão, é lançada uma nuvem venenosa indolor que extermina todas as formas de vida sobre a superfície do planeta. Não há meio de resistência possível e, em poucos dias, a humanidade conhece seu fim.

Terrível, né? Mas Zarka, uma das invasoras, é picada por uma cobra, e recebe a ajuda de um médico que vivia recluso em luto num sítio, após se sentir culpado pela morte de sua noiva. Com o veneno, Zarka perde temporariamente seus poderes – as alienígenas tem força física superior aos humanos, poder de hipnose e telepatia –, e deixa-se envolver emocionalmente por Patrick, o médico. Mas ele, ao descobrir o que ela é e qual sua missão, procura resistir aos seus encantos e, de alguma forma, tentar impedir o inevitável.

Devido ao seu período de recuperação, Zarka é dada como perdida, e após o sucesso da missão, deixada sozinha na Terra. Desta forma, ambos ficam como que desterrados. Ela sem suas companheiras e ele sozinho no mundo.

Assim, na maior parte da narrativa ocorre este relacionamento controverso entre uma zurk – o nome da civilização extraterrestre – e um humano. Após seguidos contratempos, terão de aprender a conviver juntos e, talvez recomeçar uma nova civilização em nosso planeta.

Mas por que as zurks aniquilaram a humanidade? Zarka explica que testes nucleares realizados na Lua destruíram parte de sua civilização e, por isso, não viram outra alternativa. Pois, sim, as zurks vivem na Lua, mais precisamente sob a superfície, com uma sociedade altamente tecnológica, capaz de viajar pelo espaço e, por meio de um aparelho de pulso, permitir até a invisibilidade. A intenção, após o fim da humanidade é, eventualmente, ocupar a própria Terra.

É um romance bem movimentado, primeiro na invasão em si e no processo de domínio e extermínio. Depois, do meio para o final, o drama entre a alienígena e o último dos homens. Ao desprezo dela e o ódio dele, haverá, gradualmente, a possibilidade de amor entre eles. Mas longe de ser simples ou inevitável.

Publicando esta obra no início dos anos 1970, Cassandra Rios – pseudônimo de Odete Pérez Rios –, faz parte do chamado momento distopico da FCB, quando aqueles que escreveram histórias do gênero, tinham como intenção criticar metaforicamente o regime militar. Rios, em particular, dentro deste contexto, dialoga com outras autoras que publicaram FC neste período, enfatizando, principalmente, a condição feminina na sociedade da época, como por exemplo, no autoritarismo niilista em Um Dia Vamos Rir Disso Tudo (1976), de Maria Alice Barroso ou na distopia alegórica feminista de Asilo nas Torres (1979), de Ruth Bueno.

Assim, se a crítica à ditadura é mais obliqua, presente mais nas mazelas da violência e opressão da civilização, o romance ganha força e relevância com o protagonismo feminino. Pois o patriarcado teria sido responsável pelo fracasso da civilização humana, e uma outra voltada mais à sensibilidade, à beleza e um sentido social mais coletivo, teria mais a ver com a condição da própria mulher. Aqui no caso, extremamente empoderada.

Mas ao ler a obra, não me parece que o comportamento do matriarcado lunar seja tão mais elevado, pois a solução que deram à ameaça nuclear que sofreram, não é muito diferente do que os homens tem feito ao longo de nossa História. Resolver conflitos e ameaças por meio da força e da guerra.

Sempre soube que Cassandra Rios era a “autora maldita” do Brasil. A mais perseguida e censurada da ditadura militar. E não porque se opunha politicamente ao regime de forma mais direta, mas por expor cruamente o falso moralismo da sociedade e os tabus da sexualidade. Mesmo assim, publicou 68 livros, quase todos de ficção erótica, entre 1948 e 2000, sendo uma das que mais venderam no país. Mas não deixou de ser surpreendente que ela tenha publicado um romance de FC, que tem o que dizer e, principalmente, é divertido e inteligente. Uma editora mais progressista poderia arriscar uma nova edição desta pérola quase anônima da nossa FC.

Marcello Simão Branco

 

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

A Hora do Vampiro

 



A Hora do Vampiro (Salem´s Lot), Stephen King. Tradução: Luzia Machado da Costa. Capa: sem autoria. 434 páginas. Rio de Janeiro: Record, sem data. Publicação original de 1975.

 

Este romance foi iniciado antes dele publicar o primeiro, Carrie (1974) – um imediato sucesso de público e crítica –, sendo concluído e publicado depois. Conferiu a King a liberdade financeira para que pudesse se tornar um escritor em tempo integral, pois recebeu US$ 550 mil pela venda do original. Desta forma, é a partir deste romance que ele passará a construir uma carreira sólida e extremamente bem-sucedida.

A Hora do Vampiro se passa na cidadezinha de Jerusalem´s Lot, uma das tantas meio que esquecidas no interior do noroeste dos Estados Unidos, aliás, a região local de King e onde ele situa a maior parte de suas histórias. O escritor Ben Mears volta a ela depois de adulto para tentar escrever um romance e, desta forma, lidar melhor com a morte recente da esposa e espiar seus traumas de infância vividos nesta localidade. Mais especificamente numa certa casa, a Mansão Marsten, que situada no alto de uma colina pode avistar qualquer ponto do município, imperando sobre todo o resto. Ocorre que lá foi cometido um assassinato bárbaro no passado, e o menino Ben teria tido uma experiência sobrenatural lá, ao se deparar com o fantasma do assassino morto.

Mas, como tolamente entrega a tradução da primeira edição brasileira – provavelmente inspirada no sucesso do filme A Hora do Espanto (Fright Night; 1985) –, a história não é propriamente sobre uma casa mal-assombrada, mas sim sobre vampiros. De qualquer forma existe a conexão entre a casa e os chupa-sangues porque, no mesmo momento da volta de Ben Mears, estranhamente desde a tragédia, a casa voltou a ser habitada. Tal conexão não passa despercebida por alguns dos habitantes mais antigos, como, por exemplo, o xerife e uma solteirona idosa que testemunhou a tragédia de Marsten.

A partir daí situações da época dos assassinatos reaparecem. Pessoas começam a sumir. Primeiro um menino, depois alguns adultos; fora o fato de outros reaparecerem só à noite e completamente alterados: pálidos, fortes, sedutores e mortais. De início, até se desconfia que Ben Mears pudesse ter alguma coisa a ver com os fatos, mas como o contexto vai tomando conta da cidade de forma insidiosa e geral, um pânico silencioso se instala, pois Jerusalem´s Lot foi tomada e dominada por vampiros. O mestre deles, um certo Sr. Kurt Barlow – de origem austríaca – nunca visto à luz do dia, que como se saberá depois se estabeleceu na casa Marsten, por causa de sua ligação antiga com o primeiro assassino da casa. Tão estranho quanto ele é seu serviçal, Richard Straker, um homem alto e calvo, que a título de fachada abre um antiquário. Mas todos se perguntam para que fregueses, numa cidadezinha pequena e de beira de estrada.

Ben Mears se vê envolvido nesta trama absolutamente aterradora, custando a acreditar que, de fato, esteja relacionada com seres sobrenaturais que se alimentam de sangue humano. Mas ele não está sozinho. Ao seu lado está Susan Norton, sua nova namorada; Matt Burke, o professor de literatura da escola local; o médico Jimmy Cody e o menino Mark Petrie. Todos eles se veem envolvidos de forma dramática na luta e no desespero que só faz crescer, porque a cidade é tomada por uma epidemia de mortos-vivos.

A Hora do Vampiro é um romance de horror tradicional sobre um dos seus temas mais abordados e populares. Mas passa longe de ser apenas mais um. King concebeu a história a partir da ideia de como seria se Drácula chegasse aos Estados Unidos de sua época, a década de 1970. Para tornar a história mais segura para si próprio, a situou numa cidadezinha fictícia do Maine, o lugar onde vivia e mais conhecia. Seu próprio território, afinal. Aliás, como dito, esta característica seria seguida em sua carreira, pois a maioria de suas histórias – romances, principalmente – se situam nesta região do país. Mas, de certa forma, faz sentido para o vampiro também, por ser um ambiente menor, mais facilmente controlável e que chama menos a atenção.



Mas a opção de King e de Barlow é mais interessante, não por causa da vinculação afetiva ou por ser uma cidade pequena e à margem, mas pelo tratamento que dá a ela como se fosse também uma personagem. Como King especula em mais de um momento na trama, Salem´s Lot – uma abreviação de Jerusalem´s Lot – simboliza o que seriam estas cidades pequenas, uma espécie de organismo moribundo, com uma lógica e uma passagem de tempo própria, movida por moradores solitários, invejosos e frustrados. Além de isoladas, frias e nebulosas, tornando as situações sorumbáticas e duvidosas, com um quê de irrealidade.

Já as características do vampiro seguem o padrão tradicional estabelecido por Bram Stoker (1847-1912). Só saem dos esconderijos à noite para se alimentar e incluir novas vítimas à sua condição, só podem ser mortos por estacas de madeira no coração, hipnotizam as pessoas com o olhar, e tem pavor aos símbolos cristãos, como água benta e sobretudo o crucifixo. Tudo isso vincula o vampiro como um ser do mal, satanizado, e de âmbito sobrenatural. King trabalha dentro deste contexto de forma competente. Mas pensei que talvez pudesse haver alguma variação ou problematização destas características. Lembro especialmente do que fez Richard Matheson (1926-2013), com seu romance Eu Sou a Lenda (I am Legend; 1954), no qual as pessoas se tornam vampiros devido a uma pandemia. Uma causa natural, o que vincula o romance também à ficção científica.

De todo modo, A Hora do Vampiro é uma história assustadora. Mesmo depois de ter lido e visto tanto sobre este subgênero do horror, a força da história, as sequências vivamente descritas e, principalmente, o desespero das pessoas, tanto das vítimas, como dos seus parentes e amigos, é comovente. O que só mostra como as principais virtudes de King apareceram com força desde o início de sua carreira. Ao mesmo tempo que nos compadecemos com o triste destino de personagens reais e empáticos, é difícil largar a leitura. Como ocorreria ao longo de toda a sua carreira. King é um cronista sensível da alma interior e soturna de seu país e parte desta força ocorre pelo seu poder impressionante de contar uma história. Difícil não se envolver e não sair diferente depois da conclusão.

King também não se desvencilhou facilmente de Salem´s Lot porque a revisitou nas noveletas “Jerusalem´s Lot”  e “A Saideira” (One for the Road), publicadas em sua primeira coletânea de contos, Sombras da Noite (Night Shift; 1978), onde explora, na primeira, acontecimentos estranhos e nunca explicados no passado distante da cidade, e na segunda, dos misteriosos fatos subsequentes após o fim do romance. A primeira das origens e a segunda do destino da cidade amaldiçoada. Mas também porque o romance foi rapidamente adaptado para uma minissérie de TV, Os Vampiros de Salem (Salem´s Lot; 1979), dirigida por Tobe Hooper (1943-2017), que se tornou uma das melhores versões audiovisuais sobre o vampiro. Um clássico, que foi ainda seguida por mais duas produções para a TV, uma em 2004 e outra de 2024.

A Hora do Vampiro teve novas edições no Brasil, entre elas uma com um título mais fiel ao espírito da obra: Salem, publicada pela Objetiva, no selo Ponto de Leitura, em 2010. E um indicativo para ilustrar a permanência posterior da obra, foi a primeira de King a ser finalista de um prêmio literário importante no campo do horror e da fantasia, o World Fantasy Award em 1976. Uma demonstração de que o reconhecimento da crítica vinha a par do enorme sucesso junto ao público. E que só iria crescer ao longo de sua carreira.

Marcello Simão Branco



sábado, 30 de agosto de 2025

Os filhos das estrelas, H. G. Wells

Os filhos das estrelas
(Star begotten), H. G. Wells. 248 páginas. Tradução de Gustavo Terranova Aversa. São Paulo: Andarilho, 2025. Publicação original de 1937.

H. G. Wells (1866-1946) dispensa apresentações. Este escritor britânico é sumamente conhecido e popular entre leitores no mundo todo, autor de uma infinidade de clássicos da literatura, entre os quais estão A guerra dos mundos, O homem invisível, A máquina do tempo, além de trabalhos em diversas outras áreas, como filosofia, política e história. 
Contudo, mesmo sendo um leitor inveterado dos textos de Wells, não conhecia Os filhos das estrelas, novela originalmente publicada em 1937 que apresenta uma série de características incomuns, tanto ao gênero da ficção científica no qual ele pode ser classificado, não sem alguma polêmica, mas ao próprio escopo  dos textos do autor. 
Não que lhe seja realmente desconforme, pois está alinhado às ideias mais frequentes de Wells, mas por conta do estilo. Creio nunca ter lido um texto assim de Wells e me parece nunca ter lido algo parecido na fc.
Porque Os filhos das estrelas mal tem um enredo. De fato, ele se manifesta através de longos diálogos ao estilo platônico,  que vão se aprofundando, mudando o ponto de vista e reformulando argumentações. Ou seja, a novela está mais para um ensaio filosófico do que para uma ficção, como um diálogo de Platão com pequenas parábolas como ilustrações argumentativas. A única diferença é que Wells não encerra em aporia, mas oferece uma conclusão mais ou menos satisfatória.
A história, se podemos dizer assim, fala sobre Joseph Davis, um homem comum da sociedade britânica que, certo dia, depois de participar de conversas aleatórias com alguns intelectuais num evento, tem uma revelação perturbadora: a humanidade estaria sendo manipulada em sua estrutura genética por alienígenas de Marte que, sem condições de promover uma invasão física ao planeta, bombardeiam a Terra com raios cósmicos mutagênicos para alterar a humanidade até que ela se torne marciana. Ao relatar suas angústias a um psicólogo, este acaba contaminado pela ideia e, sendo afeito a fofoca, espalha a história, que se torna um meme internacional. 
Talvez a proximidade maior deste texto de Wells, inclusive considerando-se o tema, seja com Assim falou Zaratustra, do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, publicado em 1883.  Alias, o conceito de Übermensch, desenvolvido pelo filósofo nesse livro, foi bastante explorado pela fc e pode ser percebido, por exemplo, em diversos livros de Arthur C. Clarke, e no desconcertante The new Adam,  de Stanley G. Weinbaum, publicado em 1939. O conceito é chave de entendimento desta novela de Wells.
O volume tem formato de bolso com 248 páginas, tradução de Gustavo Terranova Aversa, e faz parte da coleção Clube Andarilhos da Editora Andarilho, que é comercializada através de assinaturas. Mas, após algumas semanas, os livros dessa coleção podem ser encontrados para venda no saite da editora, aqui.
Sem dúvida, um livro incomum e valioso para todos os que gostam de uma boa ficção científica filosófica.
— Cesar Silva

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

O Filho do Homem

 



O Filho do Homem (Son of a Man), Robert Silverberg. Tradução: Luís Cadete. Capa: Estúdio Publicações Europa-América. 159 páginas. Mem Martins: Publicações Europa-América, coleção Ficção Científica, n. 225, 1996.  Lançamento original em 1971.

 

Este romance é um dos mais ambiciosos de Robert Silverberg, escrito justamente no seu período mais criativo. Isso pode ser vislumbrado em duas vertentes: a temática e a literária. Pelo primeiro aspecto, levando longe a reflexão e a especulação sobre a evolução e destino da humanidade, e também, de certo modo, da própria Terra. E pelo segundo aspecto pelo estilo explicitamente literário, no sentido do arrojo da técnica narrativa, muito sofisticada.

Conta a história de Clay, um homem do século XX que, “tomado pela corrente do tempo” vai parar num futuro muito, muito distante, na casa dos bilhões de anos. Não há uma explicação sobre como ocorreu esta viagem ao futuro, e Silverberg não oferece nenhuma, embora, curiosamente, seja uma fonte de angústia e perplexidade do personagem. Assim, embora seja uma história com viagem no tempo, não explora essa premissa por si.

Nesta nova era, toda a história humana vivida por Clay se perdeu. Ninguém tem memória de nomes como Aristóteles, Cesar, Jesus, Leonardo, Shakespeare, Rousseau, Mozart, Darwin, Marx ou Einstein. Daqui há bilhões de anos, a nossa época não passará de uma tênue linha de eventos perdida num passado quase esquecido.

Tal constatação choca Clay, mas isso é só o começo. O grande tema do livro, como já dito, é a evolução das espécies inteligentes no planeta. Dentro de bilhões de anos, algumas delas irão reivindicar descendência com a humanidade de Clay, embora, devido a tantas eras passadas, os vínculos sejam muito frágeis, quase irreconhecíveis. Nesta época, não uma, mas seis espécies vagamente humanoides coabitam o planeta: os skimmers, eaters, awaiters, breathers, destroyers e interceders. Na verdade, eles não são contemporâneos, mas representam graus sucessivos de evolução, sem que uma nova etapa evolutiva represente a extinção da anterior.

Clay é recebido por Hanmer, um skimmer. Ele o introduz num grupo deles, e logo percebe que são seres com poderes extraordinários: eles se transformam fisicamente, assumem novos estados da matéria, viajam pelo espaço sideral. Talvez o único elo identificável com o homo sapiens, para além do aspecto primata semelhante, seja a sexualidade. Vivem o sexo de forma intensa e contínua. E mais: não tem um gênero definido. Eles têm a capacidade de se transformarem ora em macho, ora em fêmea.

O livro explora com grande desenvoltura a questão dos limites do que é ser humano. A evolução caminharia para além da forma humana em si, chegando ao ponto, a meu ver exagerado – de assumir novas formas físicas não humanas, como seres rastejantes ou esferoides. Mas embora a consciência se considere humana – pois assim se afirma –, talvez não o seja mais, porque, afinal, o que nos faz humanos também está relacionado com a nossa forma física.

O Filho do Homem é especialmente rico por suscitar reflexões como esta, e elas se estendem também, como já dito, à orientação sexual e suas mais diferentes práticas. Assim, poderíamos dizer que são humanoides transexuais ou pansexuais, já que transam também com árvores – não uma qualquer, mas capacitada para isso. Nesse sentido, num estágio em que os seres são masculinos e femininos, em diferentes momentos, à sua vontade, os próprios papéis e suas identidades se alteram e se redefinem, em situações novas e surpreendentes. Nesse sentido, a história se abre para questões interessantes sobre a sexualidade, despida de preconceitos e moralismos que apenas limitariam as possibilidades desta vertente da experiência humana. A mais prazerosa. Mas também a mais perturbadora. Há várias passagens de sexo intenso, com o próprio Clay envolvido, ora como homem, ora como mulher – pois os skimmers o habilitam a partilhar de parte de suas habilidades. Mas se alguém pensar que este é um romance erótico está enganado, pois é tudo descrito de forma, digamos, técnica ou, diria, literária demais. Não propriamente adjetivado, mas elaborado com um variadíssimo vocabulário de imagens e metáforas, para ilustrar menos o prazer e mais as possibilidades de interação psicológica entre humanos sexualmente ambivalentes.

O Filho do Homem me fez lembrar do ótimo romance Vênus Mais X (Vênus Plus X; 1961), de Theodore Sturgeon – publicado no Brasil pela Hemus nos anos 1980 –, em que o protagonista também vai parar no futuro em uma sociedade composta de seres humanos andróginos, que assumem, a depender do momento, papeis masculinos ou femininos. Mas nesta há uma sociedade altamente tecnológica e com seres robóticos a realizarem várias atividades.

Outra questão abordada na obra é a da mortalidade. Pois os skimmers e demais expressões do que um dia foi a humanidade estranham a finitude. Reconhecem que podem morrer, deixarem de existir, mas é uma experiência quase inexistente entre eles. Contudo, talvez pelo contato com Clay e sua ancestralidade extremamente frágil, alguns deles, como que tomados por curiosidade, irão partir para experiências que poderão conduzi-los à morte.

Neste futuro os seres de ascendência humanoide, bem como animais e vegetais em geral vivem em intensa ligação com a natureza. Os skimmers, em particular, organizam suas atividades em ciclos de rituais com a natureza: o sol, o mar, a noite, a chuva etc. Como já deve estar claro, estes humanos do futuro não se utilizam de nenhuma ferramenta ou tecnologia, pois tudo o que fazem é através da mente e uma verdadeira simbiose com aspectos da natureza. Assim, também não há uma ordem social identificável, bem como um sistema econômico ou um regime político que organize uma produção ou vida coletiva. Tudo é realizado de forma a interagir intensamente, seja do ponto de vista simbólico e sexual ou em comunhão quase que física com o planeta. Como se ele próprio tivesse alguma participação no contexto geral das formas de vida que o habitam. Tanto é assim, que os diferentes seres que reivindicam descendência com o homo sapiens vivem em regiões diferentes da Terra, que, de certa forma, ajudam a potencializar suas habilidades. Regiões com extremo calor, frio, luz, escuridão, aridez etc.




Como se vê, é um romance fascinante, fruto do momento de apogeu criativo de Silverberg e do movimento da New Wave, mas talvez, visto em retrospectiva, pareça excessivo. E nem só do ponto de vista temático, mas também estilístico, pois ele é composto em boa parte por parágrafos muito extensos, frases longas e poucos diálogos. Tudo isso, em meio a uma profusão impressionante de imagens descritivas, muito imagéticas e oníricas, que depois de um certo tempo causam um certo desconforto na leitura. Embora estimulante do ponto de vista temático, é cansativo. Ainda mais se considerarmos – e teve de ser neste caso – de uma tradução lusitana, que também apresenta suas esquisitices vocabulares.

É um livro visceral em muitos sentidos, uma experiência de ficção científica fora dos padrões. Talvez por isso, Silverberg considere O Filho do Homem um dos seus livros favoritos, como afirmou numa entrevista ao crítico Paul Turner numa edição da revista Vertex: The Magazine of Science Fiction, em 1973:

 

O Filho de Homem é estranho, surrealista, cheio de imagens oníricas, como se fosse uma linha de abastecimento subterrânea para meu próprio inconsciente literário. Eu amo este livro. Não encontrou grande aceitação popular, embora tenha certa reputação entre os críticos.

 

Sim, foi bem recebido na época pela crítica norte-americana. Mas talvez tenha sido eclipsado por outros grandes romances que ele escreveu na época como, por exemplo, Tempo de Mudança (Time of Changes; 1971) e Uma Pequena Morte (Dying Inside; 1972). De qualquer forma, mesmo que possa parecer um pouco exagerado, ou melhor, um pouco desequilibrado entre forma e conteúdo, o que realmente importa nesta obra é sua liberdade temática, diria mais, comportamental, com sua predisposição para o novo e a ausência de preconceitos, além de especulações fascinantes sobre o destino da humanidade e da própria Terra.

Marcello Simão Branco



quarta-feira, 2 de julho de 2025

A Rainha do Ignoto



 

A Rainha do Ignoto, Emília Freitas. Capa: Erika Tani Azuma e Rodrigo Disperati. 350 páginas. São Paulo: Folha de S. Paulo, coleção Folha Clássicos da Literatura Luso-Brasileira, 2023. Lançamento original em 1899.

 

A publicação deste livro nesta coleção indica a chegada da autora ao centro principal da literatura brasileira. Pois há somente nomes canonizados como, por exemplo, Machado de Assis, Luís de Camões, Castro Alves, Eça de Queiroz, José de Alencar etc. Talvez sinal de tempos mais arejados e menos preconceituosos, já que a cearense Emília Freitas (1855-1908) escreveu um romance especulativo, entre a ficção científica e o fantástico sobrenatural.

Chama a atenção, de saída, inclusive, que ela mesma pede desculpas à comunidade literária, obviamente, masculina, pela ousadia de cometer uma obra como essa. Diz que não tem padrinho e reconhece que a protagonista pode ser vista como muito extravagante ou exagerada. Mas afirma que é isso que faz dela alguém que veio para abalar as certezas da realidade, talvez mudar um mundo tão cheio de injustiças.

O romance tem início com a volta do doutor Edmundo ao sertão do Ceará, após ter ido viajar pela Europa como prêmio por ter se formado advogado. Rapidamente ele vira o centro das atenções da comunidade local, simples em seus comportamentos e costumes, especialmente das jovens que esperam a oportunidade de casar e assim “ser alguém na vida”. Inclusive, a autora retrata com muita acuidade e verossimilhança o modo de vida das pessoas do interior, tão rotineiras, religiosas, com horizontes limitados ao mundo que os cerca, enfim, tão conservadores. Nesse aspecto, Emília aborda esta perspectiva principalmente do ponto de vista feminino: dos valores e anseios das jovens, voltadas aos afazeres domésticos, aos encontros sociais em igrejas e reuniões de famílias, e suas artimanhas para conseguir um homem, o único meio de lhes dar algum reconhecimento social e alguma liberdade do controle da família.

Nesse contexto, estas mulherzinhas do mundo privado não encantam ao cosmopolita Edmundo e ele fica fascinado ao saber de uma lenda local sobre uma misteriosa mulher que, a altas horas da noite, por vezes navega no rio Jaguaribe, entoando canções melancólicas. Para o povo ela é conhecida como A Funesta, e recomendam a Edmundo que a esqueça. Mas, claro, ele quer saber quem é essa figura em tudo diferente das outras mulheres do povoado.

Edmundo conhece Probo, que tem a fama de caçar onças, e presta serviços à mulher também chamada de A Rainha do Ignoto. Pois Probo lhe conta em detalhes o que sabe sobre ela, e Edmundo resolve partir numa jornada para saber mais. A Rainha possui três navios, tripulados só por mulheres, mas isso é só o início de suas descobertas. Disfarçado de uma mulher muda que serve como ordenança da Rainha, Edmundo sobe a bordo do Tufão e desembarca na Ilha do Nevoeiro – que não é vista por quem não sabe de sua existência – onde irá descobrir o Reino do Ignoto, governado pela rainha, a mulher que tanto o fascina. Aos poucos, ao descobrir os detalhes desta sociedade secreta de mulheres, o encanto pela pessoa da Rainha se transforma em espanto pela organização e os resultados deste reino.

Com suas naus, a Rainha e sua paladinas desembarcam de porto em porto, de cidade em cidade pelo Brasil afora para realizar suas missões de caridade e correção de injustiças. A rainha e suas seguidoras se utilizam do poder do hipnotismo para iludir as pessoas, fazendo-as ver coisas sugeridas por elas, bem como se comportar de acordo com seus objetivos, nada lembrando após o ocorrido. Pois o elemento principal de identificação desta obra com a FC está, justamente, na utilização dos poderes hipnóticos, muito em voga na segunda metade do século XIX, ao lado do espiritismo, que fará sua entrada num certo momento da história em tons mais sobrenaturais do que religiosos.

Como muitos antes e depois dele, este romance se utiliza do recurso da observação externa para analisar o comportamento alheio. No caso, o doutor Edmundo sobre a sociedade secreta. Mas como que em paralelo, e principalmente, por meio desta sociedade utópica, Emília expõe e critica as mazelas e iniquidades da realidade de sua época: o machismo e desvalorização da mulher, a pobreza e exploração social, o racismo, o sistema político excludente e autoritário, fazendo-a, além de abolicionista, uma defensora da república. Só faltou defender o voto feminino, inexistente no período em que viveu.

Por meio de ações concretas de ajuda e intervenção em situações de injustiça: como a cura de doenças, a recuperação da reputação de mulheres desonradas pelos homens, a caridade e ajuda financeira aos pobres, o consolo de quem perdeu entes queridos, a libertação de escravizados do julgo de um coronel cruel, a Rainha e suas paladinas tentam reparar, mesmo que pelas bordas e de maneira incógnita, as injustiças e tristezas, principalmente dos mais desvalidos e das mulheres.

Em uma época em que a mulher era relegada ao mundo doméstico (da casa para dentro), a intenção da autora é expor estas limitações e opressões, além de criticar também os valores de um mundo social cheio de injustiças. Mas pode-se identificar um limite, pois não vai ao ponto de emancipar a condição feminina ou apresentar alternativas mais concretas para uma sociedade mais justa, pois as justiceiras, como dito, agem de forma oculta, por meio de disfarces e uso da hipnose, e não denunciam publicamente os perpetradores das mazelas. É como se as injustiças fossem confrontadas – e superadas – no plano privado, ora o mesmo em que a mulher, de forma geral, vive e tem reproduzida sua condição inferior frente aos homens e seus valores dominantes.




Uma situação esperada por toda a leitura é a descoberta do disfarce de Edmundo e, desta forma, a chance de uma altercação mais direta entre um homem ilustrado e uma mulher revolucionária. Mas, conforme a história transita entre uma aventura reparadora e outra, o advogado, embora simpático à causa, não se esforça nem para isso e menos ainda para se revelar diante de uma mulher pelo qual inicialmente, julgava-se, apaixonado. Falta ao romance não propriamente este encontro em si, mas uma cobrança mais direta, digamos assim, do comportamento masculino tão questionado.

Chama a atenção também o tema da morte. Pessoas (principalmente mulheres) morrem de dores de amor e ainda jovens. Há um sentimento de melancolia e certa morbidez a cercar praticamente todos os personagens, como se a morte fosse alguém muito próxima, em uma vida tão cheia de limitações. Talvez pelo fato de a própria expectativa de vida na época ser curta, entre 30 e 40 anos, mesmo para as pessoas que estavam na elite da sociedade. A morte era mais presente e próxima para quem vivia naquela época, talvez numa maneira que nos soe estranha nos dias de hoje.

A própria Emília não viveu até uma idade considerada avançada nos dias de hoje. Se foi aos 53 anos, acima da média da época, contudo. Além deste romance de FC&F – que na verdade foi seu último trabalho publicado – ela escreveu outro, O Renegado (1892), e a coletânea de poesias Canções do Lar (1891). Nascida na elite cearense – de pai militar –, ela atuou como professora em Fortaleza, colaborou com jornais literários e foi membro da Sociedade das Cearenses Libertadoras, o que ajuda a explicar suas ideias democráticas e feministas expostas em A Rainha do Ignoto.

Como disse antes, esta edição foi publicada por uma coleção de literatura luso-brasileira com autores mainstream, sendo Emília Freitas a maior novidade. Mas além esta singularidade, outra tem sido apontada também por alguns especialistas que estudam literatura brasileira, e mesmos uns poucos mais próximos da FC&F. De que este romance seria o ponto de partida da literatura especulativa brasileira. E especialmente saudado, como seria altamente justificado, por ter sido escrito por uma mulher, alguém à margem das decisões importantes da sociedade daquela época. Mas o caso é que se pode questionar o pioneirismo desta obra, pois outras foram escritas no país durante a segunda metade do século XIX e, lamento dizer, por homens, o que, obviamente, não é surpresa alguma. De forma rápida, só para dar alguns exemplos: Statira e Zoroastes, de Lucas José D´Alvarenga (1826), Páginas da História do Brasil Escritas no Ano 2000, de Joaquim Felício dos Santos (1868) e O Rei Fantasma, de Coelho Netto (1895), entre algumas outras. Claro que a falta deste alegado pioneirismo não tira a importância e os méritos da obra de Emília Freitas. Que se utilizou de elementos do fantástico para escrever uma obra de qualidade literária admirável e com conteúdo social e crítico muito à frente de seu tempo.

Marcello Simão Branco


segunda-feira, 2 de junho de 2025

Escala no Tempo



 

Escala no Tempo (The Door into Summer), Robert A. Heinlein. Tradução: Eurico da Fonseca. Capa: Lima de Freitas. 242 páginas. Lisboa: Livros do Brasil, coleção Argonauta n. 111. Lançamento original em 1957.

 

Quando Escala no Tempo foi publicado – de forma seriada em algumas edições da revista The Magazine of Fantasy and Science Fiction – Heinlein estava numa fase de ascensão comercial e de prestígio na FC. Pelo primeiro aspecto havia se tornado o primeiro autor do gênero a entrar na lista dos mais vendidos do jornal The New York Times, com seus romances de aventura de FC infanto-juvenil. Por outro, havia acabado de receber o seu primeiro Prêmio Hugo, pelo divertido e inteligente romance Estrela Oculta (Double Star; 1957), publicado no Brasil pela Francisco Alves.

Escala no Tempo se passa em 1970, alguns anos depois da Guerra das Seis Semanas, um conflito nuclear localizado, mas que ainda assim, dizimou algumas regiões dos Estados Unidos, com a capital Washington destruída e sendo transferida para Denver, no estado do Colorado. Mas o romance apenas cita este evento que, no fim das contas, não deixou traumas profundos, com um recomeço economicamente próspero do país.

Nesse contexto, é que encontramos Dan Davis, um engenheiro, que com seu antigo colega de Exército, Miles Gentry, abre uma pequena empresa para construção de robôs para serviços domésticos. Completa a sociedade uma linda secretária, Belle Darkin, por quem Dan se apaixona. Em parte, sua ruína ocorre por isso, mas principalmente por ser um idealista em meio à maioria das pessoas que veem apenas na prosperidade material as razões mais importantes para viver. Pois Dan é passado para trás por seus dois parceiros, quando estes vendem a empresa sem consultá-lo. Além disso, Belle o trai e se casa secretamente com Miles, seu ex-melhor amigo. Desconsolado e deprimido ele resolve fugir, e se submeter ao sono frio: um processo de animação suspensa que permite que a pessoa seja congelada e reanimada posteriormente, num prazo estipulado. Dan não quer ir sozinho, contudo: quer levar consigo seu único amigo verdadeiro, seu gato Pete. Além disso, ele transfere, secretamente, suas ações à Frederica, (Ricky), enteada de Miles, uma adolescente por quem tem grande afeição.

O plano seria colocado em ação como ele havia planejado, mas Miles e Belle descobrem, e após ele ser sedado por eles, termina por reacordar 31 anos depois, em 2001, sem Pete e sem saber o destino de Rick. Mais do que se vingar dos dois traidores, Dan quer reaver seu gato e sua amiga. Mas como? O sono frio não permite um retorno ao passado. Após um início difícil na nova realidade, ele está empregado na mesma empresa que havia adquirido a sua, e pode, dessa forma, reaver suas plantas e projetos dos engenhos que ele havia criado – e se tornado grandes sucessos no mercado. Assim, ele estava quase resignado do seu destino, quando um de seus colegas de trabalho lhe diz que um cientista conseguiu criar uma máquina do tempo.

Dan consegue contactar o cientista, agora aposentado, e descobre que o invento não foi tornado público, porque após algumas experiências bem-sucedidas com objetos, despachou um assistente 500 anos, sem saber se no passado ou no futuro. O sujeito simplesmente sumiu. Mas ele consegue finalmente convencer o Dr. Twitchell a deixá-lo usar a máquina, por sua conta e risco. Assim, Dan volta novamente a 1970, a algumas horas antes do que ocorrera da primeira vez, para tentar reescrever uma nova – e espera – feliz história. Poder finalmente, por meio de tantas tentativas, encontrar “a porta para o verão”.

É uma pena que a Argonauta não tenha traduzido o romance como A Porta para o Verão, pois a expressão é perfeita para descrever o sentido da história e o espírito dos personagens. A busca por uma saída de problemas ou situações aparentemente insolúveis, reabrindo a chance de recomeçar, por meio de um futuro mais luminoso. Contudo, a Editorial Caminho, também de Portugal, foi mais feliz e relançou a obra com o título de A Porta para o Verão, em seu número n. 41, em 1986.




Este romance de FC é eivado de um frescor de aventura absolutamente encantador, do melhor que a Golden Age produziu, mas com uma prosa acima da média. Desde o início este foi justamente o que chamou a atenção para Heinlein e o tornou rapidamente um dos mais prestigiados autores do campo: histórias altamente especulativas, mas calcadas numa sólida verossimilhança e com personagens ativos e relativamente complexos, num estilo de prosa dinâmico, moderno, muito objetivo. Escala no Tempo tem tudo isso, motivo pelo qual é sempre lembrado como um dos romances mais agradáveis da FC de Heinlein e dos anos 1950, uma década que estava num processo de transição para o que se desdobraria na New Wave, em meados dos anos 1960: uma FC mais estilosa, psicologicamente densa e politicamente contestadora.

Em certo sentido, o romance não começa como uma história de viagem no tempo no sentido convencional, mas usando o recurso da hibernação como forma de saltar para outra época. Contudo, a viagem ao passado acaba ocorrendo, embora eu tenha achado a solução um pouco forçada na trama, para que o protagonista pudesse reescrever como queria sua trajetória de vida. Mas, devido ao tom naïve e a simpatia de Dave, e principalmente de Pete – que gato adorável – isso não chega a comprometer a obra, ainda enriquecida com situações de paradoxo temporal tão confusos quanto intelectualmente estimulantes. Mas, no fundo, é um romance bastante sentimental, no qual a esperança por uma segunda chance é o ponto principal.

Mas, logo depois de The Door into Summer, Heinlein também daria uma guinada em sua carreira, ao enveredar por histórias marcadamente ideológicas e reacionárias, tornando-se mesmo para a posteridade, mais como um autor controverso, do que admirado por suas inegáveis qualidades de prosador e contador de histórias. Mesmo assim, ele publicou ao menos dois romances notáveis: Um Estranho numa Terra Estranha (Stranger in Strange Land; 1961) e Amor Sem Limites (Time Enough For Love: The Lives of Lazarus Long; 1973).

Assim, o século XX é concluído com Heinlein reconhecido entre os leitores de seu país, numa edição da revista Locus, como “o melhor escritor de FC de todos os tempos” – já nas duas enquetes feitas pelo meu fanzine Megalon (em 1991 e 1998) ele ficou em sexto lugar. Acredito que dificilmente ele seria eleito o primeiro na nossa época, marcada pela abertura da FC ao multiculturalismo e pressionada fortemente por movimentos identitários. O mais provável é que no universo da FC apenas os fãs mais ideologicamente à direita continuem a considerá-lo como seu autor preferido. Mesmo assim, numa amostra de como suas histórias são interessantes por si, houve uma adaptação cinematográfica recente de The Door into Summer em 2021, e produzida no Japão. O que só reforça que Heinlein deve ser lembrado e apreciado, essencialmente, por sua arte de contar histórias. O prazer da leitura deste livro só me comprovou isso, mesmo sendo uma pessoa que pensa bem diferente dele.

Marcello Simão Branco