sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Os Imortais

 



Os Imortais (The Immortals), James Gunn. Tradução: Teresa Curvelo. Capa: autoria não identificada. 205 páginas. Rio Maior: Galeria Panorama, série Antecipação, n. 42, Portugal, sem data. Publicação original de 1962.

 

Às vezes chegamos a um livro da forma mais inesperada. Na edição 261 do fanzine Juvenatrix (agosto de 2024), o editor Renato Rosatti publicou um bom artigo sobre a série de telefilmes produzida pela rede de TV norte-americana ABC, entre 1969 e 1975, a “ABC Movie of the Weeks”. Curioso, fiz uma pesquisa posterior e descobri o telefilme The Immortals (1969), que me chamou a atenção por ser um piloto de uma série com 15 episódios, baseado no romance homônimo de James Gunn (1923-2020), prestigiado escritor e acadêmico norte-americano.

O filme está disponível no Youtube, com acesso a legendas em português – assim como, aliás, boa parte dos 264 filmes da série da ABC. Vi, gostei e fiquei a pensar se a obra não teria sido publicada em língua portuguesa. Ora, não só foi, em Portugal, como eu tinha o livro! Um caso típico de serendipity, expressão inglesa para achados fortuitos e inesperados.

Os Imortais aborda um mundo futuro em que, de maneira também fortuita, se descobre a possibilidade da vida eterna. Após um bilionário idoso receber uma transfusão de sangue, ele não só se recupera, mas também rejuvenesce. Perplexo, o doutor Russell Pearce, procura saber quem foi o doador. E após examiná-lo, constata que Marshall Cartwright possui uma substância no sangue, a globulina gama, que tem a capacidade de resistir a qualquer doença. O corpo dele produz anticorpos contra a própria morte. O seu sistema circulatório é constantemente renovado, permitindo que as células não morram jamais. Através de uma simples transfusão, o corpo de uma pessoa doente pode ser curado. Mas o período na receptora é de apenas 30 dias, de forma que ela tem de receber novas transfusões ao fim de cerca de um mês.

No filme, o bilionário descobre Cartwright, o aprisiona, mas este foge e é perseguido pelos brutamontes do bilionário. Ao que consta, o seriado, que durou apenas uma temporada, mas foi indicado a um Prêmio Emmy em 1970, segue a mesma linha. Pois é baseado, justamente, na primeira das quatro noveletas que formam o romance fix-up, isto é, o que os norte-americanos chamam para um conjunto de histórias em sequência, baseadas num mesmo universo ficcional.

A primeira é “Novo Sangue” (New Blood), publicada em Astounding Science Fiction, em outubro de 1955. Narra, basicamente, o mesmo enredo do seriado citado acima, apenas que Cartwright não se deixa aprisionar, e nem foge, simplesmente desaparece ao descobrir que tem o dom da imortalidade, a não ser que sofra algum acidente grave. Cinquenta anos depois se passa a segunda história “Doador” (Donor), vista primeiro em Fantastic Stories of Imagination (novembro de 1960). Num Instituto Nacional de Pesquisa, se gasta bilhões de dólares para descobrir o paradeiro de Cartwright e seus possíveis filhos, bem como uma maneira de sintetizar a substância sanguínea que produz o rejuvenescimento. Mas tudo é mantido em segredo, até que um dos pesquisadores descobre o paradeiro de uma possível herdeira do imortal original. No início ele procura barganhar, mas depois escapa à procura de Bobs, a garota imortal. Esta é talvez a melhor história, com mais ritmo e suspense, bem como com os personagens mais interessantes. E assim, é de se lamentar que com o final, fique em aberto o destino do pesquisador e da garota.

Situadas décadas à frente, as duas últimas novelas enveredam por um caminho sombrio, ao mostrar as consequências da descoberta da imortalidade na sociedade como um todo. Em “Médico” (No So Great on Enemy/Medic), publicada originalmente em Venture Science Fiction (julho de 1957), acompanhamos um médico residente que é chamado para socorrer um paciente num edifício abandonado. Lá, ele o encontra sob os cuidados de uma garota cega, e vem a saber que, na verdade, o doente é ninguém menos que o doutor Russell, que mesmo sem receber o elixir atingiu uma idade bem avançada. A história mistura o atendimento em si com as reflexões do jovem médico sobre o mundo em que vive. Sua angústia é em saber se receberá o dom da imortalidade, possível de ser obtido por médicos que alcancem sucesso em sua carreira. Mas isto não passa apenas por ser um bom profissional, mas de participar do esquema de poder que permite privilégios ao estamento dos ricos e poderosos, os que se beneficiam com a imortalidade.

Na última novela, “O Imortal” (The Immortal), vista primeiro em Star Science Fiction Stories (n. 4, 1958), o mundo se consolidou numa distopia. Os centros das grandes cidades estão abandonados e em ruínas, apenas habitados por operários que mantém a produção de alimentos e remédios para os poderosos, que vivem nos subúrbios em fortalezas fortemente armadas, os imortais. Eles investem sua fortuna para manter a produção sintética da substância sanguínea milagrosa, e apenas alguns profissionais de saúde e o entorno dos que os mantém em segurança também se beneficiam. A enorme maioria restante vive em condições deploráveis, em meio à sujeira, doenças e violência, e recorrem a um gigantesco hospital para manterem sua precária condição de saúde e servirem de doadores de órgãos, num lucrativo mercado, tanto legal como ilegal de tráfico para transplantes.

Nesta história, acompanhamos a missão do médico Harry Elliot para levar uma mensagem urgente ao governador. Numa travessia muito perigosa, sujeita à violência de caçadores de pessoas para extração de órgãos, e doenças derivadas da condição de sujeira e miséria, ele é acompanhado de um médico cego – o doutor Russell que doou seus olhos para a filha, da história anterior –, um jovem que vem a ser o seu neto e uma adolescente, que trará uma revelação importante que mudará o destino da missão.

É interessante notar que paira entre os Cartwrights espalhados pelo país afora uma situação inversa da de um vampiro. Pois este precisa do sangue das pessoas para sobreviver eternamente. No livro, são as pessoas que precisam do sangue mutante para alcançar a vida eterna. O diferente é perseguido e não persegue, como o vampiro, mas ambos tem de viver de maneira oculta, como numa maldição.

Contudo, é toda a sociedade que sofre. A possibilidade de alcançar a vida eterna degenera as relações sociais, exacerbando o individualismo e o egoísmo, instaurando a lógica do poder de quem pode mais em pagar pelo benefício. Assim, todo o sistema econômico passa a girar em torno desse interesse, instaurando uma clivagem entre idosos ricos e sedentários e o restante da população, que se torna doente devido às condições insalubres em que vive, e no qual mal pode pagar pelos serviços médicos, inteiramente voltados à manutenção do privilégio dos velhos que os mantém.

Apesar de ser um livro que junta histórias previamente autônomas, o romance é bem estruturado, tornando-se progressivamente complexo, mais em termos coletivos do que individuais. No fundo, Gunn faz uma reflexão perturbadora dos possíveis efeitos que uma descoberta como essa poderia trazer para a humanidade, com instigantes observações sobre a ética médica em meio a um verdadeiro sistema econômico anarco-capitalista, que desumaniza as pessoas, reduzindo tudo à lógica utilitária do lucro. A anomia total da sociedade brutaliza as relações humanas, e a falência do Estado, completamente reduzido a uma condição de prestador de serviço à casta dos endinheirados, reprime a todos que ousem questionar ou lutar contra esta distopia.

A imortalidade é um dos temas mais recorrentes da FC, uma das inspirações básicas do pensamento especulativo, o elixir da vida, da saúde perfeita e da juventude. Mas, como mostra a maioria das obras, nem isso é perfeito, tanto no plano individual (a falta de objetivos e perspectivas numa vida sem destino), como no coletivo (com a provável apropriação do recurso como fonte de poder e discriminação). Lembro, rapidamente, de obras como o monumental Amor Sem Limites (Time Enough for Love; 1973), de Robert Heinlein; o instigante Regresso à Vida (Recalled to Life; 1962), de Robert Silverberg, bem como sua novela premiada “Born with the Dead” (1974); o clássico Estação de Trânsito (Way Station; 1963), de Clifford Simak, e o brasileiro Padrões de Contato (1985), de Jorge Luiz Calife, com a heroína Angela Duncan tornada imortal por ação da Tríade, uma superinteligência extraterrena. Além disso, o romance Horizonte Perdido (Lost Horizon; 1933), de James Hilton, duas vezes adaptado ao cinema (1937 e 1973), e o filme Zardoz (1974).

Já conhecia Gunn de outro romance fix-up bem crítico, Os Vendedores de Felicidade (The Joy Makers; 1961) – sobre uma sociedade hedonista estimulada por drogas (leia a resenha aqui e este Os Imortais segue na mesma toada, sendo, provavelmente, a mais pessimista obra sobre as prováveis consequências sobre um dos maiores desejos do ser humano.

Na prática, é crível pensar que, de fato, a imortalidade seria para poucos, e a maioria teria uma condição de vida piorada e mortal. O que poderia ser uma benção se revelaria uma maldição que condenaria a todos, inclusive os privilegiados, restritos a uma vida isolada e cheia de limitações. Para se atingir eventualmente a imortalidade, seria preciso antes mudar o sistema de valores dos seres humanos, com mais fraternidade, solidariedade, amor. Conceitos vinculados à igualdade plena, tanto em termos materiais, como filosóficos. Mas à parte esta idealização, tememos a finitude porque a vida é tudo o que temos, e não sabemos como será – se é que será – quando ela deixar de existir. Em meio ao desejo e à esperança, talvez trocássemos o medo da morte, por uma eternidade vivida entre a angústia e o vazio existencial.

Marcello Simão Branco


terça-feira, 15 de outubro de 2024

Bacurau

Bacurau
, Kleber Mendonça Filho, Juliano Dornelles. 132 min. França/Brasil, 2019. 

O cinema é uma arte praticada no Brasil desde seus primeiros tempos. Mas, como todas as demais linguagens artísticas, o cinema brasileiro passou por muitos altos e baixos, com períodos produtivos historicamente localizados entre grandes espaços de menor atividade. Tais flutuações têm vários motivos, desde questões políticas como a censura, dificuldades com a distribuição e, principalmente, problemas financeiros, uma vez que fazer um filme nunca foi barato. A indústria do cinema, na verdade, nunca se instalou solidamente no país e em muitos períodos a produção nacional foi iminentemente diletante, não raro com os cineastas financiando seus filmes com dinheiro do próprio bolso. 
Mas o cinema fantástico sofre ainda mais, pois a todas essas dificuldades estruturais soma-se ainda um grande preconceito dos próprios artistas, pois o gênero acabou associado ao cinemão norte americano, de matizes comerciais e, não raro, proselitistas. Fazer ficção fantástica no Brasil é, em muias esferas, sinônimo de entreguismo cultural. Por isso, a produção cinematográfica nacional de fc&f é pequena e pouco desenvolvida. Mas, ainda assim, têm seus clássicos, como Os cosmonautas (Victor Lima, 1962), Brasil Ano 2000 (Walter Lima Jr., 1969), Quem é Beta? (Nelson Pereira dos Santos, 1972), Parada 88: Limite de alerta (José de Anchieta, 1977) e Abrigo nuclear (Roberto Pires, 1981), entre outros raros exemplos.
Contudo, a radical redução de custos de produção devido ao surgimento das filmadoras digitais, e a possibilidade de exibição dos filmes pela internet contribuiram para o surgimento de uma nova geração de produtores audiovisuais que tem se exercitado nos ambientes não comerciais e ganhado reconhecimento em festivais nacionais e internacionais. A criação da Ancine, em 2001, foi outro grande impulsionador da produção audiovisual no país pois contribuiu valiosamente para uma produção estável que ganhou ainda mais sustentação com o advento da tv a cabo e, mais recentemente, dos serviços de streaming, que resolveram de vez os insolúveis problemas de distribuição. Por contraditório que seja, o fim do cinema como sistema de exibição em salas exclusivas foi justamente o que permitiu a produção nacional finalmente desabrochar. E esse ambiente favorável alcançou também a ficção fantástica. 
Muitos filmes bons começaram a surgir nos últimos vinte anos, e Bacurau, longa de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é o melhor exemplo do que é possível fazer com a ficção científica quando a oportunidade e a qualidade criativa se encontram. A dupla é responsável pelos grandes sucessos recentes, os premiados Um som ao redor (2013) e Aquarius (2016).
O filme conta a história de um pequeno vilarejo localizado em algum lugar no sertão de Pernambuco, habitado por gente simples e endurecida pelas dificuldades da vida e pela natureza áspera. O povo humilde é politicamente dominado pelo prefeito da cidade, que não o valoriza e só se lembra dele quando precisa de votos. Quando uma família de agricultores é chacinada, revela-se um tenebroso projeto comercial promovido pelos gestores da cidade: oferecer os habitantes de Bacurau como alvos para turistas estrangeiros psicopatas, mas cheios de dinheiro, darem vasão aos seus mais baixos instintos. É então que a "docilidade" dos homens e mulheres sertanejos vai se revelar em toda a sua glória. 
O elenco, em sua maioria, é composto de atores pouco conhecidos, como Bárbara Colen, Thomas Aquino, Silvero Pereira, Thardelly Lima, Rubens Santos, Wilson Rabelo, Carlos Francisco, Luciana Souza, Karine Teles e Julia Marie Peterson, entre outros. Mas conta também com dois nomes de peso: a brasileira Sonia Braga, que interpreta a médica Domingas – uma das pessoas mais proeminente da sociedade bacurauense –, e o ator alemão Udo Kier – que interpeta Michael, o líder da legião de assassinos –, cuja fisionomia dura é bastante conhecida dos filmes americanos de terror. 
A cenografia é um dos pontos altos da produção, que retrata com felicidade um panorama muito familiar aos brasileiros: mata de caatinga, casarios antigos e grandes obras de infraestrutura em ruínas, talvez nunca inauguradas, que servem como esconderijo para outsiders; criminosos, talvez, mas, mais que isso, sobreviventes de uma realidade em tudo pós-apocalíptica. As filmagens usaram como locação os municípios de Parelhas e Acari, no estado do Rio Grande do Norte. 
Bacurau teve um custo de R$ 7,7 milhões e arrecadou mais que o dobro disso. E ainda ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes, onde teve sua primeira exibição em 15 de maio de 2019. No Brasil, a fita estreou algumas semanas depois, no dia 29 de agosto. 
Alguns podem argumentar que Bacurau não é um efetivamente um filme de fc, visto que o único detalhe evidente do gênero é um drone em forma de disco voador que é usado pelos assassinos para rastrear suas "presas". Mas é claro que não é só isso. O que faz de Bacurau uma boa e legítima história de ficção científica são seus aspectos sociológicos e antropológicos, algo que nem sempre é percebido como especulação científica porque não se tratam de ciências duras. Muito mais que discos voadores, interessa aqui a exploração de corpos brasileiros como atração turística. Ficção? Nem tanto. Basta lembrar das crianças prostituídas por todo o país. Se ainda não temos caçadas humanas como atrações turísticas no Brasil, não falta muito para isso. Também a maneira debochada e cruel com que o poder público trata o eleitor, algo que não está nada distante da realidade. E, enfim, a maneira natural com que os sertanejos lidam com a tecnologia, todos muito a vontade com seus aparelhos celulares, ainda que um tanto ultrapassados em comparação com os dispositivos futuristas usados pelos estrangeiros. 
Também é preciso reconhecer que não há coitadismo no tratamento dado ao sertanejo. O habitante de Bacurau é – como diria Euclides da Cunha – "antes de tudo, um forte". Como os seguidores de Antônio Conselheiro em Canudos, os bacurauenses podem ser simplórios, mas tolos certamente não são. 
Cesar Silva

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Um Dia Vamos Rir Disso Tudo

 



Um Dia Vamos Rir Disso Tudo, Maria Alice Barroso. Capa: Rolf Gunther Braun. Orelha: Maria Helena Giordiani. 173 páginas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976.

 

Em 1990, o Brasil vive sob um regime autoritário. Menos pela repressão direta, os meios de controle são mais sutis e indiretos, mas não menos, ou talvez, mais eficientes. A sociedade funciona a partir de regras altamente burocráticas e organizadas por recursos tecnológicos: Sociedade Altamente Tecnológica. Censura, mensagens subliminares, consumo de rações alimentares que inibem a atividade sexual, massificação do consumo e das artes, estas influenciadas e gerenciadas por computadores – artificialmente inteligentes. Aos revoltosos, os expedientes costumeiros: recolhimento compulsório a “centros de reeducação”, e para os casos mais graves, o “desaparecimento”.

Este é o contexto sinistro do romance Um Dia Vamos Rir Disso Tudo, uma história dentro de uma história, porque é contado a partir de um romance escrito pela protagonista, no qual ao repassar seus anos de juventude, nos revolucionários anos 1960, realiza o contraste com sua velhice, vivendo sozinha em meio a um mundo distópico.

Assim, a jornalista Maria repassa sua vida no Rio de Janeiro, em meio ao início da carreira de jornalista, com a liberdade (e a reprovação machista) de uma mulher do interior vivendo sozinha numa metrópole, o convívio com seus amigos intelectuais e o romance com um boxeador. O primeiro contraste de sua vida, neste momento de ordem pessoal. Isso porque Kid Monte é em tudo antítese do que ela é e aspira para sua vida: um sujeito prático, que cultua o corpo e a natureza e com uma postura ingênua e arredia à arte e ao pensamento mais elaborado. Como ela vai finalmente notar ao escrever suas memórias, no fundo, se o boxeador lhe proporcionou os maiores prazeres e alegrias, sua ausência na maturidade também simboliza sua solidão e desesperança em meio a um mundo, de fato, embrutecido e desumanizado, com quase total ausência de espontaneidade e individualidade.

Em alguns trechos da obra, Maria, a personagem que escreve suas memórias, reflete, com um misto de surpresa e perplexidade, sobre o que aconteceu à sociedade e as próprias pessoas:

 

... não acredito que as pessoas cheguem a dizer algo que não estivesse programado antes pelo Governo, através do SPECIT (Secretaria do Pensamento Científico e Tecnológico) ou da FUCRIUM (Fundação de Utilização da Criatividade Humana). Devido a um cerco muito sutil (nada do que se faz a partir da revolução tecnológica foi implantado com violência: e aí descobrimos que a morte por asfixia pode ser aplicada suavemente, muito suavemente), atingimos este ano de 1990 com as pessoas, no mundo inteiro, muito comodamente padronizadas, servindo docilmente aos desígnios dos Governos, sem questionar se vale a pena obedecer ou não (como se a finalidade da vida de cada um de nós fosse chupar caramelos e carregar bolas de gás nos passeios na calçada. Tudo isso me desgosta, por vários motivos, mas o mais forte deles é que conseguiram retirar do ser humano aquilo que poderíamos chamar de ´a touch of God´, ou seja, o imponderável existente em cada um, que fazia com que as pessoas não se repetissem e se interessassem umas pelas outras. (pgs. 13-14).

 

    Pouco a pouco fomos cedendo terreno para eles: o pior é que se me pedissem, no passado, para que eu definisse o que era eles, juro que não saberia. Eles estavam atrás de cada porção de individualidade que nós perdíamos, nas crescentes conquistas da massificação, e quanto mais nossa liberdade se restringia, mais seguros e tranquilos eles se achavam. Quando olhei em torno me vi cercada de pessoas de borracha, que apenas se assemelhavam aos seres humanos, nada mais. (pg. 159).

 

Parece que não houve uma tomada de poder frontal, mas sim um processo gradativo e irreversível em direção ao autoritarismo. A autora constrói esse contexto para abordar o regime político mais por seus efeitos indiretos, evitando a disputa política tradicional. Assim, se mostra como uma eficiente alegoria sobre a ditatura militar, especialmente na sua fase de distensão em meados dos anos 1970 – no governo do general Ernesto Geisel (1974-1979) –, quando passou a descontruir o grosso do aparato mais repressivo em meio a uma tendência de maior estatização econômica e burocratização do Estado – que ganhou até o neologismo de tecnocracia. E que não deixou de ser surpreendente, principalmente para aqueles que golpearam a democracia em nome do capitalismo.

Da mesma forma, não fica claro como é que o mundo em geral também se tornou uma ditadura – pois em certo momento é citado um governo intercontinental –, mas toda a situação é colocada como relacionada à ruptura vivida pela própria protagonista, quando se separa de Monte e de seus amigos, após um evento traumático numa festa que levou à morte de um deles. Na verdade, todo o grupo se dissolve, e ela pouco fica sabendo dos seus destinos, agora num contexto sócio-político totalmente desfavorável, três décadas depois.

Um Dia Vamos Rir Disso Tudo discute, sobretudo, os efeitos do autoritarismo e do processo de modernização conservadora a ele relacionado, do ponto de vista das relações sociais. Faz parte das chamadas ficções distópicas da ficção científica brasileira, dos anos 1970, entre a primeira e a segunda onda do gênero, ao refletir sobre os anos de chumbo. Claro que esta classificação é feita a partir da perspectiva do gênero, pois o fato é que o romance foi escrito dentro do contexto do mainstream, aliás, como as outras obras do período. Mas isso é o de menos, o que vale é, por um aspecto, sua contribuição à compreensão das caraterísticas da ditadura e seus efeitos na sociedade brasileira da época, e por outro, da validade da FC como meio de expressão dos possíveis efeitos de um contexto distópico.

Tanto é assim, que a pesquisadora norte-americana Mary Elisabeth Ginway, em Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro (2005) – uma das principais análises já realizadas sobre a FCB – além de reconhecer a importância da obra, a situa a partir da perspectiva da condição feminina, ainda no rescaldo dos contestadores anos 1960 que, embora menos, também tiveram impacto num país de capitalismo periférico como o Brasil.

Assim, não é casual que este romance distópico seja escrito por uma mulher que projeta sua própria figura numa autobiografia escrita no porvir. De como reflete sobre sua vida e seu destino em meio a um mundo que perdeu sua humanidade, tornando-se extremamente alienado, massificado e politicamente controlado. Assim, ela, uma mulher idosa aos 63 anos, vive isolada numa chácara no interior de Minas, e que foi motivada a relembrar sua vida, ao achar casualmente as luvas de Monte dentro de uma mala. Mas ela se angustia porque receia que não irá publicá-lo, pois se tiver essa ousadia, provavelmente será censurado e ela, por suas ideias fora da ordem, porque contestadoras, poderá ser ´desaparecida´ pelo Estado.

Até onde eu sei, Maria Alice Barroso (1926-2012) fez em Um Dia Vamos Rir Disso Tudo sua única incursão na ficção especulativa e que, curiosamente, não deixa de citar a própria FC, como o tipo de literatura que sobreviveu na distopia, pois o que as pessoas querem ler (os poucos que ainda o fazem) são narrativas de “realidades tecnológicas romanceadas”. Ela foi uma figura presente na literatura brasileira com certo destaque a partir de 1955, quando estreia com o romance Os Posseiros até sua última obra, a novela infanto-juvenil de cunho futebolístico Bola no Pé, em 2010. Vencedora de prêmios como o Jabuti em 1989, refletiu, em grande medida, sobre a condição dolorida, mas de necessária emancipação da mulher numa sociedade em processo de transformação, em especial a nossa. E, nesse cenário, incluiu a especulação sensível e arguta sobre, provavelmente, o momento mais difícil de sua vida em sociedade, quando publicou Um Dia Vamos Rir Disso Tudo. Um título que, inclusive, traz embutida uma amarga ironia, como a própria personagem sugere ao fim de suas memórias.

Marcello Simão Branco

 

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Demónio

 



Demónio (Demon), John Varley. Volumes 1 e 2. Tradução: Sophie Penberthy Vinga. Capas: autorias não identificadas. 200 e 245 páginas, respectivamente. Publicações Europa-América, coleção Ficção Científica nos. 118 e 119, 1986. Lançamento original em 1984.

 

Neste romance que conclui a Trilogia de Gaia, formada além de Demónio, por Titã (1979) ler resenha aqui -, e Feiticeira (1980) - resenha aqui -, os eventos são retomados 20 anos depois de a feiticeira Cirocco Jones – que originalmente havia sido a capitã da nave terrestre Ringmaster –, haver se insurgido contra uma das versões da deusa governante do mundo artificial, Gaia, para tentar recuperar a viabilidade de um mundo com risco de destruição.

Mas a divindade ressurge e agora de forma totalmente over: uma Marilyn Monroe de 15 metros de altura – imagine isso! –, procurando dominar pela sedução e um poder sobre-humano. Pois nessa nova encarnação, Gaia se esquivou de qualquer limite ou bom-senso, voltada totalmente para sua megalomania em que procura transformar seu próprio mundo num estúdio de cinema. Ela vê e revê compulsivamente filmes e mais filmes norte-americanos, num festival de cinema ininterrupto e itinerante no interior de uma fortaleza chamada Pandemonium, onde também existe um exército poderoso a seu dispor.

Com isso, reencontramos Cirocco, a heroína que pensava ter dado cabo das loucuras e crueldades de Gaia, mas que é chamada novamente à ação para liderar uma nova e mais dramática resistência aos caprichos e arbítrios da governante da roda artificial que orbita Saturno. Cirocco é acompanhada nesta nova missão por alguns dos seus mais fiéis companheiros, como os formidáveis titânides, seres centauróides criados por Gaia e postos sob a responsabilidade de sua reprodução a cargo de Cirocco. O que se tornou um encargo pesado demais para ela, numa espécie de maldição lançada por Gaia por ela a ter desafiado. Além dos titãnides, velhos parceiros, como Chris e Robin, além de novos com destaque, como Nova, filha de Robin e Conal, que se torna uma espécie de guarda particular de Cirocco. Mas para além da resistência em si, está em jogo a sobrevivência dos titânidades como espécie e a chance de libertação de Cirocco: descobre-se que o pequeno Adam, o caçula de Robin tem o poder necessário para garantir a sobrevivência dos titânidades. Mas não só: eis que ressurge também a antiga tripulante e amante de Cirocco, Gaby Plauget, com misteriosas aparições aparentemente sobrenaturais para pessoas determinadas, principalmente, é claro, Cirocco, onde ela passa informações valiosas sobre os passos de Gaia e como derrotá-la. Como se verá, o próprio destino da trilogia estará conectado não só ao embate entre Cirocco e Gaia, mas também ao que representará Gaby neste contexto.

Em sua loucura, ou verdadeira intenção de poder desmedido, a deusa governante de Titã fomenta uma guerra nuclear na Terra. Assim de amiga da humanidade torna-se a sua maior inimiga. Os humanos sobreviventes, desesperados, emigram para o mundo dela, tornando-se explorados de todas as maneiras. Passam a sobreviver na maior metrópole de Titã, Bellinzona, onde reina o caos e a violência. Dividida em guetos, e sem lei definida, toda a sorte de injustiças e iniquidades são cometidas, num autêntico embrutecimento da condição humana. A ponto de bebês serem comercializados e carne humana ser vendida no mercado central da cidade.

Pois este lugar se tornará estratégico para a causa da resistência, quando é literalmente invadido e resgatado do caos estimulado por Gaia. Cirocco, com uma força expedicionária de dezenas de titãnides assume o poder, e restaura a lei, a ordem e um mínimo de decência e humanidade. Por trás dessa ação está a intenção de formar um poderoso Exército de centenas de milhares de homens para marchar em direção ao Pandemônio e derrotar definitivamente Gaia e libertar o pequeno Adam, raptado pela divindade.

Alguns aspectos, em particular, chamam a atenção neste livro: primeiro a ausência da nomeação do mundo como Titã. Neste terceiro livro se menciona Gaia, como a deusa e como o próprio mundo, como este fosse uma extensão da divindade. Me pareceu confuso, mas certamente Gaia aprovaria. Em segundo lugar, Varley desenvolve alguns temas candentes como paralelos ao contexto principal, mas os larga meio que pelo caminho, como se fossem pontas soltas. Exemplos temos em relacionamentos promissores, mas sem continuidades, e principalmente o pós-holocausto nuclear terrestre que tornaria a história ainda mais dramática se fosse mais integrado à trama geral. Teria pensado o autor em desenvolvê-los posteriormente, como novos episódios, transformando a trilogia numa série? Só ele mesmo poderia responder, mas o fato é que ficaram pelo caminho no prosseguimento de sua obra. E me incomodou a vinculação cultural de Gaia à cultura cinematográfica norte-americana, como se representasse toda a Terra. Todas as citações e referências são de estúdios, filmes e artistas do seu próprio país, num chauvinismo que destoa do contexto que se mostrou tão arrojado em outras áreas, como a da liberdade de comportamento, sexual, principalmente, como poucas vezes visto na FC.




Como nota o leitor, Demónio – com acento circunflexo, pois foi assim que foi grafado na edição lusitana –, é uma história extremamente movimentada, a que oferece mais sequências de ação e conflitos em toda a trilogia. Mas, de certa forma, este plano maior do enredo se mostra muito previsível – ao contrário, principalmente de Feiticeira, talvez o mais surpreendente deles –, como se quase suas 400 e poucas páginas se justificassem para o inevitável embate final entre Cirocco e Gaia. Nesse sentido, os dramas pessoais, mais particulares, vistos nos dois primeiros livros, não recebem o mesmo tratamento dramático, tornando a conclusão da saga menos intimista, ainda que reserve um belo sentimento de libertação.

Em seu devido contexto, contudo, A Trilogia de Gaia se constitui numa das iniciativas de construção de mundo mais interessantes e complexas da ficção científica, que talvez não receba mais reconhecimento por não haver obtido a mesma continuidade de publicação e popularidade de obras semelhantes como, por exemplo, a portentosa série Duna (1965-1985), de Frank Herbert (1920-1986), levada ao cinema e depois à TV e que foi trabalhada pelo autor por 20 anos, enquanto Varley abordou o seu universo ficcional por apenas cinco. Em todo caso, é possível encontrar na internet sites e blogs de fãs apaixonados pela trilogia, a ponto de reproduzir mapas de Titã – o que senti falta num mundo descrito com tantas minúcias – e da própria estrutura da roda giratória. Sensacional.

Os três livros foram publicados em Portugal, na saudosa coleção FC Europa-América, mais ou menos nos mesmos anos dos lançamentos originais, e merecem ser lançados de forma inédita aqui no Brasil. Como nos últimos anos têm ocorrido uma certa recuperação do tempo perdido, com o lançamento de obras inéditas dos anos 1970 e 1980, se algum editor mais engajado estiver a ler esta resenha, considere seriamente a possibilidade de trazer ao nosso país estes três livros fascinantes.

Pois John Varley, seu criador, é um dos mais inteligentes e provocativos autores surgidos no cenário da FC nas últimas décadas do século passado, com um hábil equilíbrio entre a aventura e momentos de sense of wonder, rigor científico e ricas especulações sobre o destino da humanidade, a partir de uma visão mais aberta e contestadora dos valores tradicionais, em especial do mundo ocidental.

Marcello Simão Branco


domingo, 25 de agosto de 2024

3%

3%
, Pedro Aguilera.  Série de tv com 33 episódios. Produção Boutique Filmes/Netflix, 2016-2020.

A indústria audiovisual é o grande fetiche dos autores de ficção fantástica. Mal escrevem os primeiros textos, já pensam em quais seriam os atores mais indicados para representarem os seus personagens, quase sempre artistas de Hollywood porque, afinal, sonhar não custa nada. Muitas vezes vezes essa mania é movida apenas pelo sentimento de veneração ao estrangeiro, mas não devemos nos enganar: chegar a indústria audiovisual ainda é o melhor caminho para se obter reconhecimento, fama e algum dinheiro extra. Pelo menos, é assim que funciona nos EUA: os autores geralmente ganham muito mais pelo licenciamento de direitos para cinema e para a tv do que com a venda direta dos seus escritos. Portanto, se é assim que funciona na matriz, deve funcionar aqui também. 
A internet, especialmente após o advento da banda larga, pareceu ser o canal que todos estavam esperando para a distribuição de obras audiovisuais, uma vez que prescinde das salas exibidoras e de um sistema de transmissão televisiva para fazer chegar o conteúdo ao expectador. Mas, infelizmente, não emergiram projetos bem sucedidos assim, embora tenham existido tentativas, como a série Animal, produzida em 2014 para a tv a cabo. Alguma coisa ainda faltava e parece que, finalmente, temos o caminho das pedras: o serviço de conteúdo por streaming
O primeiro seriado brasileiro de fc&f a despontar nesse ambiente foi 3%, distopia futurista original criada por Pedro Aguilera, cujo episódio piloto foi lançado no Youtube em 2011. Adquirida pela Netflix em 2016, tornou-se a primeira série brasileira na plataforma, com quatro temporadas e um total de 33 episódios produzidos. Na direção, revezam-se César Charlone, Daina Giannecchini, Dani Libardi e Jotagá Crema.
Trata-se de uma produção sofisticada, com um elenco enorme que conta com atores conhecidos da teledramaturgia brasileira: João Miguel, Bianca Comparato, Zezé Mota, Michel Gomes, Rodolfo Valente, Vaneza Oliveira, Rafael Lozano, Viviane Porto, Samuel de Assis, Cynthia Senek, Laila Garin, Bruno Fagundes, Thais Lago, Fernando Rubro e Amanda Magalhães – até Ney Matogrosso faz uma participação especial – além de uma infinidade de coadjuvantes e figurantes que formam a população de uma favela miserável chamada Continente, que parece ser a única coisa que sobrou do Brasil num futuro pós holocausto, cuja explicação não é fornecida. 
Porém, há um lugar chamado Maralto onde uma elite vive em luxo e abundância. Uma vez por ano, ao longo dos últimos cem anos, o governo (que tem contornos corporativos) promove o Processo, uma espécie de "vestibular" cujo objetivo é selecionar, entre os jovens do Continente com vinte anos completos, os novos cidadãos para Maralto. Os testes são severos, em muitos casos, mortais, e valorizam aspectos físicos, intelectuais, morais e psicológicos dos candidatos. Apenas três por cento dos inscritos serão aprovados. A concorrência é feroz e trapacear é permitido. Na verdade, uma personalidade trapaceira é até valorizada, como vamos descobrir ao longo do extenuante processo, que também vai revelar a personalidade e a motivação de cada um dos candidatos. Também vamos descobrir que há um movimento revolucionário subterrâneo, pesadamente reprimido pela administração, cujo objetivo é acabar com o Processo. Mas não são apenas os candidatos que escondem esqueletos no armário: entre aqueles que estão "do lado de lá" também há segredos comprometedores, além de intrigas e traições veladas. Ninguém está plenamente seguro, nem mesmo em Maralto.
A cenografia é elegante, com uma estética futurista econômica. Muitas sequências foram gravadas nas dependências da Arena Corinthians, em Itaquera (SP). Também foram usados como locações o Instituto Inhotim, em Brumadinho (MG), e a comunidade Heliópolis, em São Paulo (SP). Os efeitos especiais são competentes, assim como o desenho de produção. O roteiro tem bons diálogos, e uma narrativa tensa, que fica ainda mais perturbadora pela lentidão com que o Processo avança.
A série está disponível em 190 países e é elogiada no exterior, com uma avaliação muito boa no saite de resenhas Rotten Tomatoes: 85% de aprovação na primeira temporada. Também é muito inclusiva, com atores de todas as etnias, além de um cadeirante entre os personagens principais. 
O sucesso de 3% foi efeivamente convincente. Depois dele, o campo se abriu para a produção brasileira: O escolhido (2019, Netflix), Onisciente (2020, Netflix) Spectros (2020, Netflix), Desalma (2020, Globlo Play), A todo vapor (2020, Prime) e Cidade invisível (2021, Netflix) são alguns dos exemplos que se seguiram e a tendência não arrefeceu nem durante a pandemia. Isso já é, por si, um grande mérito para 3%, que merece ser lembrado como o ponto de virada da fc&f na indústria audiovisual brasileira.
— Cesar Silva

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Feiticeira

 



Feiticeira (Wizard), John Varley. Volumes 1 e 2. Tradução: Maria Nóvoa. Capas: Tim White. 162 e 164 páginas, respectivamente. Publicações Europa-América, coleção Ficção Científica nos. 87 e 89, 1984 (vol.1) e 1985 (vol. 2). Lançamento original em 1980.

 

Este é o segundo romance da Trilogia de Gaia, iniciada com Titã (1979) - ver resenha aqui - livro que causou um grande impacto na FC norte-americana do final da década de 1970, pela verossimilhança da narrativa, rigor nos conceitos científicos, muita criatividade na construção de um mundo, e uma postura de comportamento dos personagens bastante ousada para os padrões do gênero até então – e mesmo hoje.

Pois Feiticeira além de não ficar atrás em tudo isso, explora com mais detalhes estes aspectos, em especial os relacionamentos entre os personagens e as consequências entre os poderes da deusa e seus súditos. A história ocorre em 2100, exatos 75 anos após a chegada dos humanos à estrutura de Titã, um mundo artificial criado e controlado por uma entidade viva, a Gaia, na órbita de Saturno. A protagonista da primeira história, a ex-capitã da nave Ringmaster Cirocco Jones foi nomeada por Gaia como a feiticeira, isto é, uma espécie de zeladora do mundo, com poderes especiais e responsável em torná-lo viável e harmonioso do ponto de vista do relacionamento com os chamados cérebros regionais, entidades criadas por Gaia responsáveis por cada região.

Encontramos Cirocco ainda jovem, como parte dos poderes concedidos por Gaia, para que ela exerça a função por muito tempo, mas submersa, por assim dizer, em crises existenciais, que dificultam o exercício de seus deveres. Também presente está Gaby Plauget, antiga astrônoma da Ringmaster e amante de Cirocco que, embora meio afastada dela, ainda exerce funções auxiliares importantes, ainda mais por causa da debilidade psicológica de Cirocco.

Titã – por meio de Gaia – estabelece relações diplomáticas com a Terra, inclusive com embaixada na Suíça e membro das Nações Unidas, e recebe milhares de humanos todos os anos, de forma temporária ou permanente. Nesse contexto, chega a Titã Chris e Robin, dois jovens com problemas neurológicos. Chris tem crises de ausência e amnésia temporária e Robin epilepsia. Ambos esperam ser curados de seus problemas através da intervenção de Gaia, que oferta essa possibilidade aos que a procuram. De certa forma, é uma contrapartida da entidade para que os humanos a respeitem e não se voltem, eventualmente, contra ela e seu mundo. Mas para que os enfermos possam ser curados têm de provar seu “heroísmo”, através de atos ou realizações que recebam a aprovação da deusa. Para esta, no fundo, tudo se trata de jogos: na criação de espécies e na aferição de provas e missões aos humanos, de forma a vencer seu tédio de uma existência de milhares de anos e manter o interesse e temor por parte dos nativos e humanos.

Chris e Robin conhecem Gaby, que lhes apresenta Cirocco. As duas ex-astronautas devem partir numa missão de contato com os cérebros regionais e convidam os dois jovens a partirem com eles, mesmo sem saber exatamente como ou em quais circunstâncias possam provar algum valor a Gaia. Aos humanos se juntam alguns titânides, a adorável espécie nativa mostrada no primeiro volume, seres semelhantes a centauros, de feição feminina, mas hermafroditas, já que exercem papeis sexuais tanto masculinos como femininos. Em Titã, eles viviam uma guerra fratricida com os anjos, seres alados que moravam na parte mais alta da estrutura toroidal. Cirocco intervém como mediadora junto a Gaia e como efeito do processo de pacificação, a humana torna-se responsável pela sobrevivência reprodutiva dos titânides. Somente sua saliva pode ativar os óvulos que eles produzem para que sejam implantados em uma mãe hospedeira para crescer. Mas é responsabilidade em demasia para Cirocco e este é o motivo pelo qual recorre com frequência ao alcoolismo.

A maior parte da história se passa nessa peregrinação pelo mundo, eivada de muitos perigos, mortais para alguns personagens. Isso porque, para além dos riscos inerentes à própria travessia de um mundo inóspito e traiçoeiro, ocorre uma reação não declarada da deusa, por intuir um possível plano de Cirocco e Gaby para destroná-la, insatisfeitas que estão com as vaidades e caprichos – por vezes cruéis – da criadora com relação às suas criaturas, vistas como mero joguetes com motivações fúteis. Com isso, o romance ganha em suspense e dramaticidade e o destino de todos é posto em risco praticamente a cada página virada. Isso torna Feiticeira um romance mais vibrante que Titã, no qual a apresentação do mundo em si se constituía como um um dos objetivos principais.




Merece destaque também o relacionamento de Chris com a titânide Valiha. Ela se apaixona pelo humano e o seduz sexualmente, principalmente quando ele não responde por si. Primeiramente chocado, aos poucos, ele vai cedendo aos seus preconceitos e se entrega ao sexo e amor pela titânide. Aqui está outro aspecto particularmente interessante nesta trilogia: a liberdade sexual dos personagens, e de como todas as formas de amor são igualmente válidas, desde que verdadeiras para os que a vivem.

Feiticeira não segue o padrão das histórias do meio de uma série de três livros: a de recheio de algo que apenas prepara o clímax da história final. Pois, como já deve ter se tornado claro, explora com mais desenvoltura as potencialidades do mundo de Titã e desenvolve ainda mais os personagens apresentados na primeira aventura. No fundo, esta trilogia e Feiticeira em especial, discute questões valiosas como o valor e o ônus do livre arbítrio, além da insubmissão a regras e normas que reprimem a expressão mais livre das pessoas. Sejam elas humanas ou alienígenas.

Nesse sentido, chama a atenção a reflexão de Varley sobre as possíveis consequências da existência e convívio mais próximo entre um deus (no caso Gaia, uma deusa) e suas criaturas. De como seria muito complicado este relacionamento, pois os humanos em especial, teriam como julgar os atos divinos, se bons ou maus; se justos ou injustos etc. Ao passo que na possibilidade de existência de um Deus abstrato, não visível e atingível (como o das religiões terrestres, judaico-cristão em especial) seria mais tolerável conviver com o imponderável, já que estaria no plano da indiferença do universo.

Mas mesmo com a eventual existência do Deus de inspiração religiosa da Terra, Gaia não seria parte de seu panteão. Até porque, mesmo poderosa como era, tinha uma existência física no plano natural e, como visto em Titã, ela seria parte de uma espécie alienígena presente em outras partes da galáxia, inclusive numa das luas de Urano. Ou seja, seria uma divindade na capacidade de criar vida, sobretudo, mas, ainda assim, presente no plano natural e, em tese, mortal ou finita. Contudo, talvez seja contraditório que mesmo postulando uma concepção não teísta – de uma divindade sobrenatural – Varley admite a necessidade de que exista um ser que governe Titã. Ora, por que não deixar que a estrutura orbital cheia de atmosfera e vida tome seu próprio rumo?

Por esta e outras questões Feiticeira recebeu uma boa acolhida dos leitores e críticos dos EUA, tornando-se um dos finalistas do Prêmio Hugo de 1981 – assim como já havia acontecido com Titã, um ano antes. O melhor é que seja lido depois do primeiro, mas por sua riqueza narrativa e instigantes questões culturais e existenciais que aborda – e deixa em aberto para Demônio (Demon; 1984), o livro que irá concluir a trilogia –, vale por si. Grande livro.

Marcello Simão Branco


terça-feira, 23 de julho de 2024

Os poucos & amaldiçoados: Os corvos de Mana'Olana; Felipe Cagno & Fabiano Neves

Os poucos & amaldiçoados: Os corvos de Mana'Olana; Felipe Cagno & Fabiano Neves; minissérie em 6 edições, 204 páginas. Timberwolf, 2020.

Desde que o mercado brasileiro de quadrinhos entrou em colapso, com a quebra de distribuidoras, bancas e livrarias, não restou aos artistas nenhum outro caminho que não o da produção independente através de financiamento direto, também chamado de crowdfunding, modalidade de comercialização antecipada que se assemelha a prosaica "vaquinha" entre amigos. Várias plataformas na internet oferecem o serviço, sendo a mais popular o Cartarse, que promove campanhas para todo tipo de proposta, desde livros e quadrinhos, até jogos, brinquedos e projetos sociais. Qualquer pessoa pode propor um projeto e também apoiar os projetos ofertados. E isso parece que tem dado muito certo para os artistas, pois há ótimos trabalhos sendo publicados assim, como nunca antes se viu. Infelizmente, as tiragens são bastante limitadas, pois são voltadas apenas para atender ao conjunto específico de apoiadores que o projeto conquistou na campanha. O material não entra em circulação, portanto, e sai das mãos dos autores diretamente para seus leitores. Uma vez esgotada a tiragem, é preciso propor uma nova ação de financiamento para reimprimir o material. 
Este é o caso de Os poucos & amaldiçoados: Os corvos de Mana'Olana, série de ficção científica criada pelo roteirista Felipe Cagno e o ilustrador Fabiano Neves, ambos profissonais experientes. Cagno é cineasta, formado pela FAAP, agraciado em 2015 com o Prêmio Angelo Agostini, da AQC-SP. Neves atua desde 2000 como ilustrador nos quadrinhos estrangeiros, tendo trabalhado com personagens como Red Sonja, Xena Princess Warrior, Marvel Zoombies e outros. A eles se uniram vários outos artistas, principalmente coloristas e letristas, para viabilizar o projeto proposto em seis episódios financiados individulamente entre 2019 e 2020, com cerca de mil apoiadores por edição e metas superadas em até quinhentos por cento.
A história é um faroeste futurista, que recebe influências evidentes de Apenas um peregrino, de Garth Ennis e Carlos Ezquerra, publicado no Brasil no início do século pela Devir Livraria, e também da série de romances A Torre Negra, de Stephen King – especialmente o volume Os lobos de Calla –, bem como a sua adaptação em quadrinhos publicada no Brasil pela Panini. Mas com uma importante diferença: o protagonista de Os corvos de Mana'Olana é uma mulher. Trata-se de uma pistoleira sem nome, chamada por todos de "Ruiva" devido a cor dos cabelos. Ela caça monstros num futuro em que os oceanos da Terra desapareceram e abundam feras sobrenaturais que ameaçam os poucos sobreviventes que herdaram o interminável  deserto em que o planeta se tornou. Dentre outras abominações, a Ruiva está a caça de uns corvos gigantes que sequestram crianças, e ela vai encontrá-los em Mana'Olana – região que antes era conhecida como o Havaí –, não sem ter que superar muitos contratempos no caminho, entre os quais se inclui alguma traição. 
Curiosamente, o futuro de Os poucos & amaldiçoados é em tudo similar a estética do velho oeste americano, com pistoleiros cavalgando pelos desertos em busca de riqueza e aventura, passando por vilarejos de mineiros e colonos mexicanos com seus saloons e prostíbulos, ruas de terra e nenhuma lei, mas com navios abandonados aqui e ali. Até as armas que a Ruiva usa são Colts Paterson. Explica-se: o momento em que o mundo "foi adiante", como diria Stephen King, foi no século XIX. Mas, de qualquer forma, uma história de ficção científica pós-apocaliptica que ainda tem demônios e assombrações, a última coisa que se pode exigir é verossimilhança. Isso fica a cargo da capacidade do autor em construir um ambiente que sustente a suspensão de incredulidade do leitor, no que ele consegue ser razoavelmente bem sucedido. 
Cada um dos cinco primeiros episódios tem trinta e duas páginas, e o último tem quarenta e quatro. Além da história em si, cada edição traz diversas pinups da Ruiva realizadas por artistas variados. As revistas têm ilustrações em cores impressas em papel cuchê e capas cartonadas com laminação brilhante. Quando foi lançada a sexta edição, o projeto ofereceu a opção de adquirir todos os seis volumes juntos em uma caixa especial. Mais tarde, o trabalho também foi ofertado em um único volume encadernado reunindo todas as edições. 
Os corvos de Mana'Olana foi apenas o primeiro arco de histórias do universo de Os poucos & amaldiçoados. Os autores promoveram campanhas para outras história no mesmo universo, como as edições encadernadas Nação sombria (2020) e Ambição sem volta (2021), e Dilúvio, segunda minissérie com a Ruiva, ainda em publicação.