segunda-feira, 3 de novembro de 2025

O Perfuraneve

 


    O Perfuraneve (Le Transperceneige), Jacques Lob e Benjamin Legrand (texto) e Jean-Marc Rochette (desenho). Posfácio: Jean-Pierre Dionnet. Tradução: Daniel Luhmann. Capa: Pedro Inoue. 280 páginas. São Paulo: Aleph, 2015. Lançamento original entre 1982 e 2000.

 

Percorrendo a branca imensidão de um eterno e congelante inverno de solidão, corre, de uma ponta à outra da Terra, um trem cujo movimento nunca se encerra... É o expresso perfuraneve, com seus mil e um vagões.

 

    É com esse verso de certa melancolia e resignação que tem início uma das obras de FC mais interessantes das últimas décadas. Embora seja originalmente uma graphic novel, meu primeiro contato com a obra foi por meio de sua adaptação ao cinema, Expresso do Amanhã (Snowpiercer; 2013), do diretor coreano Bong Joon-ho, o mesmo que dirigiu em 2019 o impactante Parasita (Gisaengchung), premiado com o Oscar de melhor filme e a Palma de Ouro em Cannes.

    O filme é uma FC de primeiro nível, dos melhores produzidos neste século, mas tinha vontade de ler a obra original, uma criação dos franceses Jacques Lob (1932-1990), Benjamin Legrand (1950) e Jean-Marc Rochette (1956).

    A proposta da obra é instigante e beira a originalidade – algo tão difícil –, ao mostrar um mundo num pós-apocalipse climático, sob um rigoroso inverno glacial de cerca de – 90º C, e percorrido por um trem gigantesco levando o que teria restado da humanidade, numa viagem em círculos, rumo a lugar algum.

    Sempre imaginei como tal projeto havia sido concebido e a HQ esclarece que, originalmente, o bólido não se destinava a uma missão de sobrevivência. Era um trem de turismo de luxo, que teve de ser adaptado para abrigar o máximo possível de pessoas devido à catástrofe glacial. Assim, ao trem original, foi acrescentado centenas de vagões e que quanto mais distantes do original, menos relação guardava com o projeto para o qual havia sido concebido. Com isso, do meio para o fim do comboio, as condições de vida só fizeram piorar. Uma situação concreta de abandono à própria sorte, com menos aquecimento, pouca comida e água, alojamentos improvisados e precários, sujeira e muita, mas muita gente amontoada, superlotando a maioria dos vagões. E tudo isso rigidamente controlado por uma força militar para que as pessoas não ultrapassem seus vagões, ameaçando a vida dos bacanas da proa do expresso.

    A certo ponto, é revelado que a falta de alimento suficiente chegou ao ponto de levar as pessoas, desesperadas, a comerem os restos dos mortos, que também não tinham onde ser sepultados. Por outro lado, como dito, da metade até a locomotiva havia todos os luxos possíveis. Habitados pela elite de políticos, empresários, religiosos e militares. Desfrutam do bom e do melhor, com habitações confortáveis, locais para lazer e atividades culturais (teatro, cinema), e alimentos fartos e saudáveis, produzidos em hortas e granjas com frangos, coelhos e camundongos. Mas eles não vivem tranquilos, pois temem uma invasão da maioria explorada dos vagões retardatários.

    O Perfuraneve se divide em três histórias, escritas em momentos diferentes e reunidas nesta edição: “A Fuga” (Le Transperceneige; 1982 – depois renomeada como The Escape), “Os Exploradores” (The Explorers; 1999) e “A Travessia” (The Crossing; 2000). A primeira escrita por Jacques Lob – o autor original da obra –, e a segunda e a terceira por Benjamin Legrand, com todas ilustradas por Jean-Marc Rochette. Uma quarta aventura, Terminus, saiu depois, em 2015, com textos de Olivier Bouquet (1973) e Alexis Nolent (1967), com uma conclusão para a série. Isso porque, de fato, o final da terceira história deixa o desfecho em aberto. Além disso, uma prequela com três aventuras também foi publicada – entre 2019 e 2020 –, explorando eventos anteriores à primeira história, com textos de Nolent (assinado como Matz) e desenhos de Rochette. Os dois primeiros já saíram, e o terceiro está previsto para este ano.



    “A Fuga” mostra o início da trama, com o trem percorrendo o planeta após a catástrofe ambiental. É onde Proloff, um homem dos últimos vagões consegue chegar até onde as pessoas vivem melhor. Mas com ele se espalha uma doença rapidamente contagiosa, e ele é posto em quarentena. Onde também é colocada, a bela Adeline Belleou, ativista de um movimento político que busca melhorar as condições de vida dos miseráveis. Posteriormente, são levados até a presença do presidente e do general, onde conhecem a vida de luxúria da elite.

    Os líderes querem que o casal organize a população para que desocupem os últimos vagões e migrem para os do meio do comboio, pois pretendem descartá-los porque a locomotiva estaria perdendo velocidade e, com isso, pioraria as condições de sobrevivência, já que o aquecimento interno é mantido pela alta velocidade constante do veículo. Mas, Proloff e Adeline descobrem que, na verdade, a intenção é se livrar deles e dos explorados, descartando os vagões antes que saiam de lá. Lideram, então, uma revolta, mas que é inútil, já que a doença, supostamente trazida por Proloff, se espalhou e está a matar a maioria das pessoas. O filme se concentra justamente nesta história, a melhor das três.

    A segunda, “Os Exploradores”, avança no tempo, e apresenta um outro trem, o Desbrava-Gelo. Menor que o primeiro, mas também socialmente dividido entre uma minoria abastada e uma maioria explorada, transita na mesma rodovia circular. Viceja um medo comum: que possa colidir com o Perfuraneve, tido como desaparecido. Assim, o trem é desacelerado e freia para que uma missão de exploradores busque uma possível alternativa à vida confinada. Apenas um soldado volta com vida, Puig Valles, e mesmo a contragosto dos líderes, se torna uma liderança popular e se casa com Val Kennel, uma artista e filha do governante. O isolamento e claustrofobia é tão intenso que dá vazão ao surgimento de uma seita que acredita que, na verdade, eles vivem numa nave espacial e estão no espaço e não na Terra.

    Na terceira aventura, “A Travessia”, o mesmo Desbrava-Gelo recebe uma mensagem de rádio vinda do outro lado do oceano. Com isso, se reacende a esperança de que possa haver outro grupo de humanos sobreviventes, e se organiza uma missão para chegar até lá. É revelado que, o motor principal do Perfuraneve foi obtido, pois teria havido a temida colisão, embora sem uma consequência dramática, e agora, o motor será usado para potencializar o Desbrava-Gelo em sair dos trilhos, com o uso de esteiras. Valles irá liderar a missão, mas com a oposição de alguns líderes, incomodados com sua popularidade. Um motim estoura no interior do trem na ausência de Valles, mas isso não será o pior, mas sim a frustração com o fato do sinal de rádio ser apenas uma mensagem automática.

    No fundo, para além da ousada ideia de uma máquina movida numa energia de moto-perpétuo – um mito recorrente da Física –, o grande tema da obra é a luta de classes. De como a elite explora a maioria miserável, e a manipula para manter seus valores e luxos. Mas isso não dura para sempre – assim como a eficiência das máquinas –, e o eixo da narrativa é o conflito entre as duas classes, numa interessante extrapolação do materialismo histórico marxista. Ainda mais por viverem num ambiente confinado, com recursos limitados e sob severa censura e repressão.

    O único porém na obra é uma certa falta de unidade narrativa entre a primeira e as outras duas histórias. Talvez pelas demais terem sido produzidas muito tempo depois e haver alguma confusão sobre o surgimento do segundo trem e sua relação com o original e seu destino. Em todo caso, a força dramática e de aventura entre as duas últimas histórias torna o conjunto suficientemente robusto e satisfatório, ainda que inconcluso.

    O livro que tenho em mãos – por sinal, extremamente pesado! –, foi muito bem produzido pela Aleph, com uma qualidade gráfica e de papel de alta qualidade, a par, creio, com o original francês. Os desenhos em preto e branco só acentuam os dramas humanos, ainda mais porque em contraste com o aflitivo branco eterno do exterior do trem. O volume é completado por longo e intimista depoimento de Jean-Pierre Dionnet (1947), criador da célebre revista de quadrinhos Metal Hurlant (1975-1987; 2002-2004; 2006), sobre sua amizade com Jacques Lob e, através dela, sobre sua carreira até a criação de O Perfuraneve.

    Além desta HQ monumental e do filme, foi produzida também uma série de TV, entre 2016 e 2020, com quatro temporadas. Ainda não a vi, mas é provável que tenha seguido a linha crítica semelhante ao filme e, principalmente da HQ, embora com mais liberdade de ação, dada a quantidade de episódios.

    O Perfuraneve já é um clássico moderno da FC, por reunir algumas das características mais relevantes do gênero: uma premissa especulativa instigante, plena de drama e personagens complexos, além de discussões relevantes sobre a realidade e suas perspectivas. No caso, sobre os possíveis efeitos trágicos da crise climática e sua relação com o modo de produção capitalista.

Marcello Simão Branco

 

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