domingo, 25 de agosto de 2024

3%

3%
, Pedro Aguilera.  Série de tv com 33 episódios. Produção Boutique Filmes/Netflix, 2016-2020.

A indústria audiovisual é o grande fetiche dos autores de ficção fantástica. Mal escrevem os primeiros textos, já pensam em quais seriam os atores mais indicados para representarem os seus personagens, quase sempre artistas de Hollywood porque, afinal, sonhar não custa nada. Muitas vezes vezes essa mania é movida apenas pelo sentimento de veneração ao estrangeiro, mas não devemos nos enganar: chegar a indústria audiovisual ainda é o melhor caminho para se obter reconhecimento, fama e algum dinheiro extra. Pelo menos, é assim que funciona nos EUA: os autores geralmente ganham muito mais pelo licenciamento de direitos para cinema e para a tv do que com a venda direta dos seus escritos. Portanto, se é assim que funciona na matriz, deve funcionar aqui também. 
A internet, especialmente após o advento da banda larga, pareceu ser o canal que todos estavam esperando para a distribuição de obras audiovisuais, uma vez que prescinde das salas exibidoras e de um sistema de transmissão televisiva para fazer chegar o conteúdo ao expectador. Mas, infelizmente, não emergiram projetos bem sucedidos assim, embora tenham existido tentativas, como a série Animal, produzida em 2014 para a tv a cabo. Alguma coisa ainda faltava e parece que, finalmente, temos o caminho das pedras: o serviço de conteúdo por streaming
O primeiro seriado brasileiro de fc&f a despontar nesse ambiente foi 3%, distopia futurista original criada por Pedro Aguilera, cujo episódio piloto foi lançado no Youtube em 2011. Adquirida pela Netflix em 2016, tornou-se a primeira série brasileira na plataforma, com quatro temporadas e um total de 33 episódios produzidos. Na direção, revezam-se César Charlone, Daina Giannecchini, Dani Libardi e Jotagá Crema.
Trata-se de uma produção sofisticada, com um elenco enorme que conta com atores conhecidos da teledramaturgia brasileira: João Miguel, Bianca Comparato, Zezé Mota, Michel Gomes, Rodolfo Valente, Vaneza Oliveira, Rafael Lozano, Viviane Porto, Samuel de Assis, Cynthia Senek, Laila Garin, Bruno Fagundes, Thais Lago, Fernando Rubro e Amanda Magalhães – até Ney Matogrosso faz uma participação especial – além de uma infinidade de coadjuvantes e figurantes que formam a população de uma favela miserável chamada Continente, que parece ser a única coisa que sobrou do Brasil num futuro pós holocausto, cuja explicação não é fornecida. 
Porém, há um lugar chamado Maralto onde uma elite vive em luxo e abundância. Uma vez por ano, ao longo dos últimos cem anos, o governo (que tem contornos corporativos) promove o Processo, uma espécie de "vestibular" cujo objetivo é selecionar, entre os jovens do Continente com vinte anos completos, os novos cidadãos para Maralto. Os testes são severos, em muitos casos, mortais, e valorizam aspectos físicos, intelectuais, morais e psicológicos dos candidatos. Apenas três por cento dos inscritos serão aprovados. A concorrência é feroz e trapacear é permitido. Na verdade, uma personalidade trapaceira é até valorizada, como vamos descobrir ao longo do extenuante processo, que também vai revelar a personalidade e a motivação de cada um dos candidatos. Também vamos descobrir que há um movimento revolucionário subterrâneo, pesadamente reprimido pela administração, cujo objetivo é acabar com o Processo. Mas não são apenas os candidatos que escondem esqueletos no armário: entre aqueles que estão "do lado de lá" também há segredos comprometedores, além de intrigas e traições veladas. Ninguém está plenamente seguro, nem mesmo em Maralto.
A cenografia é elegante, com uma estética futurista econômica. Muitas sequências foram gravadas nas dependências da Arena Corinthians, em Itaquera (SP). Também foram usados como locações o Instituto Inhotim, em Brumadinho (MG), e a comunidade Heliópolis, em São Paulo (SP). Os efeitos especiais são competentes, assim como o desenho de produção. O roteiro tem bons diálogos, e uma narrativa tensa, que fica ainda mais perturbadora pela lentidão com que o Processo avança.
A série está disponível em 190 países e é elogiada no exterior, com uma avaliação muito boa no saite de resenhas Rotten Tomatoes: 85% de aprovação na primeira temporada. Também é muito inclusiva, com atores de todas as etnias, além de um cadeirante entre os personagens principais. 
O sucesso de 3% foi efeivamente convincente. Depois dele, o campo se abriu para a produção brasileira: O escolhido (2019, Netflix), Onisciente (2020, Netflix) Spectros (2020, Netflix), Desalma (2020, Globlo Play), A todo vapor (2020, Prime) e Cidade invisível (2021, Netflix) são alguns dos exemplos que se seguiram e a tendência não arrefeceu nem durante a pandemia. Isso já é, por si, um grande mérito para 3%, que merece ser lembrado como o ponto de virada da fc&f na indústria audiovisual brasileira.
— Cesar Silva

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Feiticeira

 



Feiticeira (Wizard), John Varley. Volumes 1 e 2. Tradução: Maria Nóvoa. Capas: Tim White. 162 e 164 páginas, respectivamente. Publicações Europa-América, coleção Ficção Científica nos. 87 e 89, 1984 (vol.1) e 1985 (vol. 2). Lançamento original em 1980.

 

Este é o segundo romance da Trilogia de Gaia, iniciada com Titã (1979) - ver resenha aqui - livro que causou um grande impacto na FC norte-americana do final da década de 1970, pela verossimilhança da narrativa, rigor nos conceitos científicos, muita criatividade na construção de um mundo, e uma postura de comportamento dos personagens bastante ousada para os padrões do gênero até então – e mesmo hoje.

Pois Feiticeira além de não ficar atrás em tudo isso, explora com mais detalhes estes aspectos, em especial os relacionamentos entre os personagens e as consequências entre os poderes da deusa e seus súditos. A história ocorre em 2100, exatos 75 anos após a chegada dos humanos à estrutura de Titã, um mundo artificial criado e controlado por uma entidade viva, a Gaia, na órbita de Saturno. A protagonista da primeira história, a ex-capitã da nave Ringmaster Cirocco Jones foi nomeada por Gaia como a feiticeira, isto é, uma espécie de zeladora do mundo, com poderes especiais e responsável em torná-lo viável e harmonioso do ponto de vista do relacionamento com os chamados cérebros regionais, entidades criadas por Gaia responsáveis por cada região.

Encontramos Cirocco ainda jovem, como parte dos poderes concedidos por Gaia, para que ela exerça a função por muito tempo, mas submersa, por assim dizer, em crises existenciais, que dificultam o exercício de seus deveres. Também presente está Gaby Plauget, antiga astrônoma da Ringmaster e amante de Cirocco que, embora meio afastada dela, ainda exerce funções auxiliares importantes, ainda mais por causa da debilidade psicológica de Cirocco.

Titã – por meio de Gaia – estabelece relações diplomáticas com a Terra, inclusive com embaixada na Suíça e membro das Nações Unidas, e recebe milhares de humanos todos os anos, de forma temporária ou permanente. Nesse contexto, chega a Titã Chris e Robin, dois jovens com problemas neurológicos. Chris tem crises de ausência e amnésia temporária e Robin epilepsia. Ambos esperam ser curados de seus problemas através da intervenção de Gaia, que oferta essa possibilidade aos que a procuram. De certa forma, é uma contrapartida da entidade para que os humanos a respeitem e não se voltem, eventualmente, contra ela e seu mundo. Mas para que os enfermos possam ser curados têm de provar seu “heroísmo”, através de atos ou realizações que recebam a aprovação da deusa. Para esta, no fundo, tudo se trata de jogos: na criação de espécies e na aferição de provas e missões aos humanos, de forma a vencer seu tédio de uma existência de milhares de anos e manter o interesse e temor por parte dos nativos e humanos.

Chris e Robin conhecem Gaby, que lhes apresenta Cirocco. As duas ex-astronautas devem partir numa missão de contato com os cérebros regionais e convidam os dois jovens a partirem com eles, mesmo sem saber exatamente como ou em quais circunstâncias possam provar algum valor a Gaia. Aos humanos se juntam alguns titânides, a adorável espécie nativa mostrada no primeiro volume, seres semelhantes a centauros, de feição feminina, mas hermafroditas, já que exercem papeis sexuais tanto masculinos como femininos. Em Titã, eles viviam uma guerra fratricida com os anjos, seres alados que moravam na parte mais alta da estrutura toroidal. Cirocco intervém como mediadora junto a Gaia e como efeito do processo de pacificação, a humana torna-se responsável pela sobrevivência reprodutiva dos titânides. Somente sua saliva pode ativar os óvulos que eles produzem para que sejam implantados em uma mãe hospedeira para crescer. Mas é responsabilidade em demasia para Cirocco e este é o motivo pelo qual recorre com frequência ao alcoolismo.

A maior parte da história se passa nessa peregrinação pelo mundo, eivada de muitos perigos, mortais para alguns personagens. Isso porque, para além dos riscos inerentes à própria travessia de um mundo inóspito e traiçoeiro, ocorre uma reação não declarada da deusa, por intuir um possível plano de Cirocco e Gaby para destroná-la, insatisfeitas que estão com as vaidades e caprichos – por vezes cruéis – da criadora com relação às suas criaturas, vistas como mero joguetes com motivações fúteis. Com isso, o romance ganha em suspense e dramaticidade e o destino de todos é posto em risco praticamente a cada página virada. Isso torna Feiticeira um romance mais vibrante que Titã, no qual a apresentação do mundo em si se constituía como um um dos objetivos principais.




Merece destaque também o relacionamento de Chris com a titânide Valiha. Ela se apaixona pelo humano e o seduz sexualmente, principalmente quando ele não responde por si. Primeiramente chocado, aos poucos, ele vai cedendo aos seus preconceitos e se entrega ao sexo e amor pela titânide. Aqui está outro aspecto particularmente interessante nesta trilogia: a liberdade sexual dos personagens, e de como todas as formas de amor são igualmente válidas, desde que verdadeiras para os que a vivem.

Feiticeira não segue o padrão das histórias do meio de uma série de três livros: a de recheio de algo que apenas prepara o clímax da história final. Pois, como já deve ter se tornado claro, explora com mais desenvoltura as potencialidades do mundo de Titã e desenvolve ainda mais os personagens apresentados na primeira aventura. No fundo, esta trilogia e Feiticeira em especial, discute questões valiosas como o valor e o ônus do livre arbítrio, além da insubmissão a regras e normas que reprimem a expressão mais livre das pessoas. Sejam elas humanas ou alienígenas.

Nesse sentido, chama a atenção a reflexão de Varley sobre as possíveis consequências da existência e convívio mais próximo entre um deus (no caso Gaia, uma deusa) e suas criaturas. De como seria muito complicado este relacionamento, pois os humanos em especial, teriam como julgar os atos divinos, se bons ou maus; se justos ou injustos etc. Ao passo que na possibilidade de existência de um Deus abstrato, não visível e atingível (como o das religiões terrestres, judaico-cristão em especial) seria mais tolerável conviver com o imponderável, já que estaria no plano da indiferença do universo.

Mas mesmo com a eventual existência do Deus de inspiração religiosa da Terra, Gaia não seria parte de seu panteão. Até porque, mesmo poderosa como era, tinha uma existência física no plano natural e, como visto em Titã, ela seria parte de uma espécie alienígena presente em outras partes da galáxia, inclusive numa das luas de Urano. Ou seja, seria uma divindade na capacidade de criar vida, sobretudo, mas, ainda assim, presente no plano natural e, em tese, mortal ou finita. Contudo, talvez seja contraditório que mesmo postulando uma concepção não teísta – de uma divindade sobrenatural – Varley admite a necessidade de que exista um ser que governe Titã. Ora, por que não deixar que a estrutura orbital cheia de atmosfera e vida tome seu próprio rumo?

Por esta e outras questões Feiticeira recebeu uma boa acolhida dos leitores e críticos dos EUA, tornando-se um dos finalistas do Prêmio Hugo de 1981 – assim como já havia acontecido com Titã, um ano antes. O melhor é que seja lido depois do primeiro, mas por sua riqueza narrativa e instigantes questões culturais e existenciais que aborda – e deixa em aberto para Demônio (Demon; 1984), o livro que irá concluir a trilogia –, vale por si. Grande livro.

Marcello Simão Branco