terça-feira, 23 de julho de 2024

Os poucos & amaldiçoados: Os corvos de Mana'Olana; Felipe Cagno & Fabiano Neves

Os poucos & amaldiçoados: Os corvos de Mana'Olana; Felipe Cagno & Fabiano Neves; minissérie em 6 edições, 204 páginas. Timberwolf, 2020.

Desde que o mercado brasileiro de quadrinhos entrou em colapso, com a quebra de distribuidoras, bancas e livrarias, não restou aos artistas nenhum outro caminho que não o da produção independente através de financiamento direto, também chamado de crowdfunding, modalidade de comercialização antecipada que se assemelha a prosaica "vaquinha" entre amigos. Várias plataformas na internet oferecem o serviço, sendo a mais popular o Cartarse, que promove campanhas para todo tipo de proposta, desde livros e quadrinhos, até jogos, brinquedos e projetos sociais. Qualquer pessoa pode propor um projeto e também apoiar os projetos ofertados. E isso parece que tem dado muito certo para os artistas, pois há ótimos trabalhos sendo publicados assim, como nunca antes se viu. Infelizmente, as tiragens são bastante limitadas, pois são voltadas apenas para atender ao conjunto específico de apoiadores que o projeto conquistou na campanha. O material não entra em circulação, portanto, e sai das mãos dos autores diretamente para seus leitores. Uma vez esgotada a tiragem, é preciso propor uma nova ação de financiamento para reimprimir o material. 
Este é o caso de Os poucos & amaldiçoados: Os corvos de Mana'Olana, série de ficção científica criada pelo roteirista Felipe Cagno e o ilustrador Fabiano Neves, ambos profissonais experientes. Cagno é cineasta, formado pela FAAP, agraciado em 2015 com o Prêmio Angelo Agostini, da AQC-SP. Neves atua desde 2000 como ilustrador nos quadrinhos estrangeiros, tendo trabalhado com personagens como Red Sonja, Xena Princess Warrior, Marvel Zoombies e outros. A eles se uniram vários outos artistas, principalmente coloristas e letristas, para viabilizar o projeto proposto em seis episódios financiados individulamente entre 2019 e 2020, com cerca de mil apoiadores por edição e metas superadas em até quinhentos por cento.
A história é um faroeste futurista, que recebe influências evidentes de Apenas um peregrino, de Garth Ennis e Carlos Ezquerra, publicado no Brasil no início do século pela Devir Livraria, e também da série de romances A Torre Negra, de Stephen King – especialmente o volume Os lobos de Calla –, bem como a sua adaptação em quadrinhos publicada no Brasil pela Panini. Mas com uma importante diferença: o protagonista de Os corvos de Mana'Olana é uma mulher. Trata-se de uma pistoleira sem nome, chamada por todos de "Ruiva" devido a cor dos cabelos. Ela caça monstros num futuro em que os oceanos da Terra desapareceram e abundam feras sobrenaturais que ameaçam os poucos sobreviventes que herdaram o interminável  deserto em que o planeta se tornou. Dentre outras abominações, a Ruiva está a caça de uns corvos gigantes que sequestram crianças, e ela vai encontrá-los em Mana'Olana – região que antes era conhecida como o Havaí –, não sem ter que superar muitos contratempos no caminho, entre os quais se inclui alguma traição. 
Curiosamente, o futuro de Os poucos & amaldiçoados é em tudo similar a estética do velho oeste americano, com pistoleiros cavalgando pelos desertos em busca de riqueza e aventura, passando por vilarejos de mineiros e colonos mexicanos com seus saloons e prostíbulos, ruas de terra e nenhuma lei, mas com navios abandonados aqui e ali. Até as armas que a Ruiva usa são Colts Paterson. Explica-se: o momento em que o mundo "foi adiante", como diria Stephen King, foi no século XIX. Mas, de qualquer forma, uma história de ficção científica pós-apocaliptica que ainda tem demônios e assombrações, a última coisa que se pode exigir é verossimilhança. Isso fica a cargo da capacidade do autor em construir um ambiente que sustente a suspensão de incredulidade do leitor, no que ele consegue ser razoavelmente bem sucedido. 
Cada um dos cinco primeiros episódios tem trinta e duas páginas, e o último tem quarenta e quatro. Além da história em si, cada edição traz diversas pinups da Ruiva realizadas por artistas variados. As revistas têm ilustrações em cores impressas em papel cuchê e capas cartonadas com laminação brilhante. Quando foi lançada a sexta edição, o projeto ofereceu a opção de adquirir todos os seis volumes juntos em uma caixa especial. Mais tarde, o trabalho também foi ofertado em um único volume encadernado reunindo todas as edições. 
Os corvos de Mana'Olana foi apenas o primeiro arco de histórias do universo de Os poucos & amaldiçoados. Os autores promoveram campanhas para outras história no mesmo universo, como as edições encadernadas Nação sombria (2020) e Ambição sem volta (2021), e Dilúvio, segunda minissérie com a Ruiva, ainda em publicação.

segunda-feira, 1 de julho de 2024

Titã




 Titã (Titan), John Varley. Volumes 1 e 2. Tradução: Maria Nóvoa. Capa do volume 1: Ron Walotsky. Capa do volume 2: Tim White. 164 e 159 páginas, respectivamente. Publicações Europa-América, coleção Ficção Científica nos. 92 e 95, 1985. Lançamento original em 1979.

 

John Varley surgiu como um dos talentos mais promissores da FC norte-americana em meados dos anos 1970. Estreou em 1974 com o conto “Picnic on Nearside”, em The Magazine of Fantasy and Science Fiction e obteve grande prestigio com seu romance de estreia, Ofiúco, o Aviso (The Ophiucchi Hotline; 1977) – publicado pela coleção FC Europa-América, número 15. Com eles sobressaiu qualidades, como a habilidade na renovação de conceitos tradicionais do gênero (como as viagens interestelares e a colonização humana do espaço), sem parecer repetitivo e bem informado sobre o estado da arte do conhecimento científico em áreas diversas, como a clonagem e a inteligência artificial, além de apresentar personagens com valores e comportamentos não convencionais. Tudo isso transparece em Titã, romance de ficção científica hard, mas que usa o modelo para extrapolá-lo num sentido ousado e transformador.

Quando a DSV Ringmaster, uma nave tripulada chega nos arredores de Saturno para uma missão científica de exploração de algumas de suas luas, descobre um satélite novo, mas que, na verdade, não é natural. Os tripulantes, comandados por Cirocco “Rocky” Jones constatam que é semelhante a uma roda, com cabos em direção a um centro. Assim, não se trata da lua Titã, mas de um corpo novo que é nomeado provisoriamente de Themis, justamente um dos titãs da mitologia grega, que também nomeia várias outras luas de Saturno.

Ao se aproximar da estrutura, a nave terrestre é subitamente atraída e destruída, e os astronautas são como que tragados para o subsolo do satélite. Isso porque Themis, posteriormente renomeado de Gaia – a edição lusitana traduziu como “Geia”, mas adoto aqui o nome mais conhecido do conceito –, apesar de ter uma estrutura toroidal é inteiramente preenchido por densas florestas, montanhas, rios e vales. A denominação faz sentido, pois o satélite é uma estrutura alienígena concebida para comportar vida, criada a partir de um ser muito poderoso, quase um Deus, embora como ele mesmo reconhecerá, gerado a partir do que chamou de “os construtores”. Uma espécie alienígena ainda mais antiga e poderosa que, segundo ele, desapareceu da galáxia.

A comandante Jones e os demais tripulantes, como a astrônoma Gaby Plauget, as físicas clones April e Agosto, o piloto Eugene Springfield, o médico Calvin Greene e o engenheiro Bill, reaparecem em pontos distantes de Gaia com a sensação de terem sido devorados e regurgitados para a superfície, cada um deles com sentimentos próprios e apavorantes do que passaram. Jones, em particular, é uma das que menos sofreu transformações dessa experiência traumática. Isso porque, os demais saem com suas personalidades muito alteradas, alguns de maneira irrecuperável.

Jones reencontra Gaby e a seguir Calvin, que reaparece a bordo de um ser gigantesco semelhante a um dirigível, chamado de Assobio, porque se comunica através de sons sibilantes com outros seres de Gaia, que ele conduz em troca de alimentos trazidos pelos outros habitantes. Pois Calvin é capaz de se comunicar com Assobio, torna-se parte do modo de vida do ser, e decide abandonar a missão, para contrariedade de Jones.




Em sua jornada por respostas, Jones, Gaby e Bill – que perdeu parte de sua memória –, encontram uma espécie parecida com centauros, chamada de titânides, no qual todos têm a forma feminina, embora alguns com órgão sexual masculino. Eles conseguem entender os humanos, mas se comunicam por meio de cantos. Jones e os demais, têm de se esforçar para cantar para se comunicar com eles. Mas após certa estranheza e dificuldade inicial, se adaptam. Assim, ficam sabendo que os seres vivem em guerra com outros alados chamados de anjos. Que surgem do alto e os atacam de forma inesperada, razão pela qual estão sempre alertas.

Muito impactada após um ataque devastador dos anjos à vila dos titânides, Jones promete ao seu líder arbitrar um possível acordo de paz. Mas na verdade, o que a comandante busca é a fonte de poder deste mundo, já que os titânides lhe revelaram que existe a entidade central citada acima, que lhes deu a vida e conduz este mundo, chamado por eles, justamente, de Gaia. Assim, Jones, Gaby e Gene abandonam a vila e partem em busca de respostas e possível ajuda para voltar à Terra.  Contudo, nessa jornada de cerca de 600 quilômetros de altura, escalando árvores e montanhas, em meios a súbitas mudanças de temperatura – do calor ao frio extremo – novos desafios e transformações estarão adiante das duas – Gene se perde no meio do caminho, após atacar sexualmente a ambas, numa fúria em parte provocada pelas transformações pelo qual passou quando tragado sob a superfície –, até o eventual contato com a entidade que criou as formas de vida nesta estrutura orbital.

Como se vê, Varley constrói um mundo extremamente imaginativo e cheio de energia. A cada capítulo, o leitor tem diante de si, uma aventura intensa e repleta de surpresas. Tanto no nível macro, do enredo, como do comportamento dos próprios personagens, em parte também sob o impacto deste mundo incrível. Neste sentido, chama a atenção a liberalidade sexual dos personagens, com Cirocco Jones e Gaby se tornando amantes, além da comandante também se envolver com Bill, e as irmãs Agosto e Abril viverem uma relação incestuosa, aqui já antes da chegada às cercanias de Saturno. Num certo momento da narrativa, também há o consumo de cocaína, tudo isso muito provocativo no cenário conservador da FC norte-americana, mesmo com Varley surgindo no contexto pós-new wave e dos contestadores anos 1960. Outro aspecto interessante que foge do padrão é o protagonismo feminino, com a história sendo conduzida de fato por mulheres, além do próprio mundo ter, de uma certa forma, uma dimensão feminina, como na exposição de duas de suas espécies, os titânides e os anjos, além da própria entidade que governa o mundo toroidal.

E os leitores e os críticos norte-americanos gostaram, pois Titã venceu o Prêmio Locus de 1980 e foi finalista dos dois principais prêmios da FC norte-americana, o Nebula em 1979 e o Hugo em 1980. É de fato seu livro mais popular e, conforme o final já sugeria com o destino surpreendente da comandante Cirocco Jones, deu ensejo a mais duas sequências: Feiticeira (Wizard; 1980) – coleção FC Europa-América, números 87 e 89 – e Demônio (Demon; 1984) – coleção FC Europa-América 118 e 119 – constituindo a chamada Trilogia de Gaia.

Para quem gosta de uma FC com uma estrutura hard competente, personagens vivos e atuantes, e um sentido de aventura apurado, Titã é uma das melhores pedidas, e ainda permeado por momentos de sense of wonder na melhor tradição do gênero. Grande livro.

Marcello Simão Branco