quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Homem Mais

     Homem Mais (Man Plus), de Frederik Pohl. Tradução: Maria Teresa Pinto Pereira. Publicações Europa-América, Coleção Livros de Bolso FC, n. 130, 1987. Lançamento original em 1976.

 

Entre os vários autores que despontaram na Golden Age da FC norte-americana, na década de 1940, Frederik Pohl (1919-2013) foi um dos mais interessantes, por sua prosa direta e cheia de ironia, personagens complexos e um acentuado viés de crítica social. Talvez por causa destas muitas qualidades, foi também um dos autores desta época que melhor transitou pela revolução desencadeada pela New Wave, nos anos 1960, permanecendo como um autor de renovado interesse até sua maturidade.

Nesse sentido, a década de 1970 foi extremamente relevante em sua carreira, com ao menos três romances importantes. Homem Mais (Man Plus; 1976), A Porta das Estrelas (Gateway; 1977) e Jem: A Construção Duma Utopia (Jem: The Making of a Utopia; 1979). Os três livros foram premiados, o primeiro com o Nebula, o segundo com o Locus e o terceiro com o National Book Award.

O primeiro trata da colonização de Marte através do desenvolvimento de um humano cibernético, o segundo aborda as consequências da descoberta de restos de uma civilização ultra tecnológica num asteroide e o terceiro nos mostra a disputa entre os países em busca do domínio de novas fontes de energia em um planeta já habitado. Nos três está embutida uma boa discussão sobre individualismo, ganância, imperialismo e capitalismo. Mas dos três Homem Mais é o menos interessante. Não pelo tema, mas sim pela forma como foi desenvolvido.

Estamos em algum momento do século XXI e o mundo está próximo de um conflito militar generalizado que pode ameaçar a sobrevivência da espécie humana. Com receio de que a paz não possa ser alcançada, os EUA desenvolvem um projeto secreto para colonizar Marte e garantir a continuidade da humanidade. Para isso o diferencial é a transformação de uma pessoa num ciborgue, com o intuito de que ele possa viver de forma segura sob as condições climáticas do planeta vermelho.

Nos anos 1970 a ciência cibernética estava em voga – é só lembrar do sucesso da série de TV O Homem de Seis Milhões de Dólares (The Six Million Dolan Man; 1974-1978) –, e Pohl imaginou como ela poderia ser incorporada no uso de um ciborgue vivendo em outro planeta. Assim, uma colonização seria mais rápida e econômica, pois seriam evitados os riscos e custos de construir estruturas artificiais que pudessem permitir a vida humana num ambiente hostil. Faz sentido, mas talvez fosse mais promissor, então, desenvolver robôs ou androides para isso.

Desta forma, após um primeiro ciborgue morrer devido à incompatibilidade do cérebro em processar a entrada sensorial dos dados e estímulos mecânicos e eletrônicos, Roger Torraway, um astronauta aposentado, se submete à experiência que mudará em definitivo sua vida e ideia do que é ser humano.

Não fica muito claro porque Torraway aceita fazer parte do projeto, mas talvez tenha algo a ver com a infidelidade de sua esposa com seu melhor amigo. Mas ainda assim não é muito razoável pensar que alguém deixe de ser humano, mesmo que com a transformação num ciborgue possa ter suas funções e capacidades expandidas. Pois, por outro lado, também há a perda de sensações e prazeres, talvez a principal delas, o sexo. Além disso não há garantia de sucesso – ainda mais com o fracasso da primeira experiência – e o sofrimento envolvido no processo de transformação só me convence de que, de fato, não faz muito sentido passar por tudo isso. Só se o sujeito for masoquista.

A maior parte do livro se desenrola na experiência de transformação de um homem numa máquina. Nisso, Pohl parece ter pesquisado muito, pois as descrições do processo são extremamente detalhadas e convincentes, ao menos para um leigo. Muitos conceitos de engenharia, cibernética biônica e medicina são apresentados. Ao que parece, com o que havia de mais moderno para a época. Nesse sentido os mecanismos que permitem que um homem tenha parte de seus órgãos, sentidos e funções substituídos por próteses, sensores e conexões cibernéticas soam como plausíveis.

Como já dito, a inspiração ocorre por causa da crise política generalizada pelo qual passa a Terra, estimulada, não por uma disputa ideológica, mas sim por recursos de energia cada vez mais escassos. É meio duvidoso que isso levasse a um conflito desta magnitude, ainda mais porque Pohl não aprofunda os motivos. De qualquer forma é curiosa a presciência de Pohl, pois a principal rival econômica e militar dos EUA é a China, renomeada de Nova Aliança Asiática, pois inclui também alguns outros países orientais. Contudo, é de se questionar que o estabelecimento de uma colônia em outro planeta seja a melhor solução para salvar a humanidade no caso da eclosão de um conflito nuclear. É enviado para Marte um ciborgue para dar início ao processo. Mas para que a missão seja segura e bem-sucedida muitos outros deverão se juntar a ele. E isso levaria muito tempo.

Além disso, os países fizeram em anos precedentes dezenas de visitas a Marte. Norte-americanos, chineses, japoneses, ingleses, franceses, russos, brasileiros. E não estabeleceram vínculos nenhum lá? Esta nova missão é dada como pioneira, e é no sentido de instalar lá um humano tecnologicamente modificado, mas e toda a experiência pregressa das outras missões? Ao que parece não serviu para nada. Além disso, quando chega a Marte, Torraway e os outros dois astronautas humanos que o acompanham descobrem vida vegetal próximo ao local de sua aterragem. Que golpe de sorte!

Como se vê, há fragilidades por todo o romance. Embora interessante, ele não se sustenta porque o autor foi desleixado em desenvolver melhor as tramas e sub-tramas do enredo. Outra situação inverossímil é a postura de Torraway que, poucos dias após chegar a Marte, resolve não voltar mais para sua antiga vida na Terra. Sente-se plenamente realizado num planeta inóspito e de escassos recursos para uma vida saudável, mesmo que ele não seja mais inteiramente humano.

Além disso, para tornar o contexto ainda mais problemático, o último capítulo revela que, na verdade, os humanos haviam sido manipulados por uma rede de computadores que adquiriram sensciência, devido à ameaça de uma guerra nuclear. Eles, assim, induzem o homem a criar um novo ser e, desta maneira, permitir a sobrevivência do homem e da máquina num novo mundo, caso a Terra venha a ser destruída. Mas é tudo meio solto, como se as soluções aparecessem às pressas, sem a devida justificativa no conjunto da história.

É de se perguntar como Homem Mais pode ter vencido o Prêmio Nebula 1976 de “Melhor Romance” e ter sido finalista do Prêmio Hugo em 1977. Talvez pelo prestigio de Pohl? Ou então porque a concorrência não era tão boa? Os outros finalistas do Nebula foram Inferno, de Larry Niven & Jerry Pournelle; Islands, de Martha Randall; Triton, de Samuel R. Delany; Shadrach in the Furnace, de Robert Silverberg e Where Late the Sweet Byrds Sang, de Kate Wilhelm. Não li os demais, mas Delany e Silverberg são autores fortes em qualquer disputa. Seja como for, Homem Mais tem o mérito de contribuir de forma efetiva no debate sobre os diferentes modelos possíveis para a colonização humana em Marte, o planeta mais provável de ser colonizado pela humanidade em algum momento de seu futuro.

 

Marcello Simão Branco

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