Memória
da Água
(Teemestarin Kirja – original finlandês; Memory of Water – da tradução em
inglês para a edição brasileira), Emmi Itäranta. Tradução de Liliana Negrello e
Christian Schwartz. Capa de Túlio Cerquize. 286 páginas. Rio de Janeiro: Galera/Record, 2015. Lançamento original de 2012.
Em um futuro não definido, mas aparentemente não
muito distante, o aquecimento global provocou o colapso da civilização como a
conhecemos. O aumento da temperatura derreteu os polos, os oceanos e mares
invadiram as superfícies, mudando toda a geografia do planeta.
A água se tornou o bem mais valioso e disputado.
Por pessoas, comunidades e países. Restaram pouquíssimas fontes de água potável
e a maior parte do que é consumido ocorre por meio de enormes usinas de dessalinização
da água dos oceanos.
Em consequência deste novo contexto guerras são
travadas há décadas em busca de fontes de energia – houve, inclusive, uma
“guerra do petróleo” –, e a China invadiu e governa o que restou da Europa. O
território da Escandinávia passou a ser chamado de Novo Qian, vivendo sob uma
rígida ditadura militar.
Mas a esta conjuntura política não é dada grande
profundidade. Mas sim a uma família peculiar que preserva a arte milenar do
ritual do chá. Nela, o velho mestre ensina seus saberes à sua única filha,
Noria, a quem se espera levar adiante a tradição da família. É uma arte quase
perdida e valorizada por poucos, especialmente os chineses e seus descendentes.
Para preparar o ritual e servir o melhor chá, os mestres retiram a água de
nascentes naturais. Assim era, e como Noria descobrirá, seu pai detém o segredo
de uma nascente oculta.
Após a morte dele, Noria se torna a nova mestre do
chá, mas não será fácil manter as aparências e o segredo, ainda mais com a
chegada de um novo comandante ao local, que passa a investigar sistematicamente
todas as famílias – punindo algumas com a sombria inscrição de um círculo azul
na porta de suas casas. Sinal para todos de que cometeram o crime de conseguir
água de forma ilegal, e serão punidos com a morte.
Memória da Água é um romance inusitado e interessante. Nos apresenta a cultura do
cultivo e preparo do chá, de forma detalhada e respeitosa. Soube mesmo de
leitores que se interessaram pelo livro por esse aspecto, mais do que ao
contexto distópico em si. O vínculo com a FC ocorre pela história se passar no
futuro e extrapolar de forma dramática problemas já graves que vivemos hoje,
com respeito às alterações climáticas no planeta.
Mas a força dramática da narrativa se dá no plano
mais pessoal em meio a este contexto desfavorável. Faz todo o sentido,
portanto, a conexão entre a excelência do chá e um mundo carente de água. E,
afinal, é colocado para a própria Noria: até que ponto é ético ter água em
abundância para manter o seu negócio enquanto a população passa necessidade?
A
autora é muito hábil e sensível também na analogia que traça entre a água como
elemento da natureza que nos traz a vida e, quando se esvai, nos leva à morte.
Assim, a arte do preparo do chá está morrendo, a civilização também e,
finalmente, cada uma das pessoas, pela ausência dramática da água no mundo. Neste
sentido, o título faz a sutil alusão à memória da água enquanto o ritual do chá
continuar existindo. Assim, Noria toma a consciência do legado do seu pai, de
manter a nascente em segredo como forma de preservar não o chá em si, mas o
vínculo com o que o mundo foi um dia e, eventualmente, possa vir a ser de novo.
Mas, como disse, ela enfrentará problemas concretos que a levarão a ser
pressionada a rever tal simbologia.
Noria
é uma garota de dezessete anos e, a despeito da grande responsabilidade que lhe
foi transferida pelo pai, também sonha em escapar desta realidade, e procurar
água potável com sua amiga de infância Sanja. Principalmente depois delas
descobrirem algumas fitas VHS num lixão abandonado. Depois de descobrirem o que
eram as fitas, conseguem reproduzir ao menos o áudio das gravações. E,
chocadas, ficam sabendo que décadas antes, um grupo de cientistas dissidentes
descobriu uma região à leste da Finlândia, chamada de Terras Perdidas, onde
haveria água potável em boa quantidade. O que elas deduzem é que, a maior parte
da água é consumida pela elite dirigente, e através da censura, repressão e
controle do acesso à água, a população vive na ignorância sobre a situação
concreta.
Elas,
então, organizam uma expedição, mas acabam surpreendidas com o cerco dos
militares e os problemas das pessoas do vilarejo, cada mais sedentas de água e
comida. Noria e Sanja, assim, tem não só seus objetivos e descobertas alterados,
mas seus próprios destinos.
Este
é o primeiro romance da escritora finlandesa Emmi Itäranta, jornalista que se
tornou crítica de teatro, e daí passou para a literatura. Traduzido para vários
idiomas, na versão em inglês foi indicado a dois dos principais prêmios da FC:
o Arthur C. Clarke Award (para o melhor romance publicado no Reino Unido no
ano) e o norte-americano Philip K. Dick Award (para o melhor romance publicado
nos EUA no ano em formato popular). Além disso, recebeu “menção honrosa” no
James Tiptree Jr Award, conferido ao melhor romance de FC escrito por uma
mulher no ano em língua inglesa. Ela escreveu um segundo romance em 2015, também
num futuro indefinido e distópico, e com a mesma boa recepção de crítica e
público, em especial na Finlândia. Foi traduzido para os EUA e Canadá como The
Weaver e no Reino Unido como The City of Woven Streets.
Além
da qualidade de uma prosa limpa e fluente, e da originalidade da história,
chama a atenção a força da voz feminina neste cenário multicultural em que se
transformou a FC no século XXI. Cada vez mais obras de culturas espalhadas pelo
mundo tem se tornado relevantes, diversificando e enriquecendo o próprio
gênero. E a perspectiva feminina é uma das que mais têm ganhado relevo neste
contexto.
Pois
em Memória da Água a condição feminina ilustra tanto a condição sensível
à preservação dos saberes do chá, quanto a do seu próprio gênero: mais oprimido
e secundário num mundo regido por regras estritamente masculinas. Ainda mais se
governado por uma cultura política e filosófica tradicionalmente machista e de
desvalorização da condição da mulher.
O
romance, portanto, pode ser interpretado em diferentes níveis: o das
consequências desastrosas de um mundo em guerra, da disputa desesperada por um
bem que hoje ainda dispomos em quantidade razoável – a água –, e de como um de
seus simbolismos – o cultivo e preparo ritualístico do chá – pode nos conduzir entre uma linha que vai da
fartura à escassez, da vida à morte, até, finalmente, no plano de visão destes
temas, a partir da perspectiva mais sensível da mulher. E, talvez por isso, o
primeiro romance da autora priorize o intimismo em meio ao contexto macro
(masculino), que, via de regra, se apresenta como organizador e, neste caso,
extremamente opressor. Um belo livro de uma autora que merece ser acompanhada.
– Marcello Simão Branco
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