quinta-feira, 16 de julho de 2020

O Outro Lado do Protocolo


O Outro Lado do Protocolo, Paulo de Sousa Ramos. Posfácio de Roberto de Sousa Causo. 56 páginas. Brasópolis: Edgar Guimarães Editor, Coleção Especulativa, volume 2, 1999. Lançado originalmente em 1985.

Esta é uma daquelas histórias quase ocultas dentro da ficção científica brasileira. A novela O Outro Lado do Protocolo ficou praticamente invisível aos olhos atentos dos fãs por quase quinze anos, até ser relançada, de forma artesanal, pela coleção organizada pelo escritor Roberto de Sousa Causo.
Isso porque ela foi publicada em 1985 pela obscura Editora Soma, de São Paulo – veja a capa ao lado. Deve ter tido uma tiragem pequena e distribuição precária, pois não foi incluída nem no completíssimo Quem é Quem na Ficção Científica – Volume II: Catálogo de Ficção Científica em Língua Portuguesa (1921-1993), do saudoso fã e pesquisador R.C. Nascimento.
O Outro Lado do Protocolo é uma novela que usa o recurso da viagem no tempo, de importância sutil na trama, para nos transportar para uma sociedade utópica num futuro indefinido. A história começa com a visita do protagonista à casa de um amigo dos tempos de escola, Tamerlão. E, de imediato, somos expostos a um estranhamento que é comum ao visitante. Há outros costumes, como a disponibilidade sexual de Tânia, esposa do amigo. O casal convida o protagonista a lhes acompanhar numa viagem à casa dos pais da mulher. Mas, para isso, eles entram numa máquina do tempo e vão para o futuro. Nesta época existe uma sociedade que vive no décimo decênio da Grande Transformação, ou seja, aproximadamente cem anos à frente. Como o protagonista – que passa a ser chamado de Ricardo pelas pessoas desta época, apesar de seus protestos veementes, pois, por modéstia, não quer revelar o nome –, vem logo a notar a única coisa em comum com o lugar em que visitou o casal: a mesma disponibilidade sexual das mulheres. Elas se oferecem prontamente a qualquer homem que achem interessante. E é ofensivo recusar!
Contudo, se esta semelhança já seria desconcertante há outros costumes diferentes neste futuro. As pessoas não envelhecem, tem sempre a aparência jovem e não há doenças. Mas tem um tempo de vida definido a cumprir. Quando os homens completam 78 anos e as mulheres 75 surge uma mancha escura no corpo, sinal de que é chegada a hora de se apresentar voluntariamente para ser executado por um computador.
É uma sociedade aparentemente funcional e satisfeita, como cabe a toda utopia. Mas, de alguma forma, a presença do visitante do passado irá colocar toda a estrutura em dúvida, transformando a convivência social. Pois parte das pessoas passa a questionar o que vem a ser o tal do envelhecimento e as doenças a ele associadas. Abre-se um debate entre grupos, os Sete Poetas, os Setenta, os Setecentos, tudo a partir do número sete, referência para várias instituições e costumes.
Ricardo conhece Stínia, uma atraente recepcionista do Hospital, por quem se envolve. Na verdade, mais do ponto de vista sexual, do que emocional, embora tenha dificuldades em aceitar se relacionar intimamente com uma mulher de 65 anos, ele com apenas 30. Na verdade, como descobrirá depois, ela tinha 75 anos, já próxima da morte, portanto.
Como é comum a tantas narrativas de sociedades idealizadas, um supercomputador administra e dirige a vida das pessoas. Tudo funciona a partir de seu comando e logística, cabendo às pessoas atividades mais prazerosas (sexo livre) e lúdicas (círculos artísticos e intelectuais). Nesta aparente liberdade, Stínia é uma das sete integrantes do grupo dos Sete Poetas – concursados e aprovados não segundo seu talento literário, mas devido ao alto nível hormonal de seu organismo.
Depois que Stínia revela a Ricardo que mentira a idade para enganar o computador, Ricardo procura ajudá-la, e buscar mais respostas às dúvidas sobre esta sociedade de pendor hedonista. Com isso descobre que, para além das duas pílulas azuis que todas as pessoas tomam diariamente – “para se sentirem bem” –, é o consumo da água, que as tornam bonitas e saudáveis, eliminando a distinção entre jovens e idosos, tão marcante no lugar de onde veio – a nossa época.
Como observa Roberto de Sousa Causo no texto que complementa o livro, “A Narrativa Metaficional de Sousa Ramos”, O Outro Lado do Protocolo se insere numa tradição de distopias da ficção científica brasileira, embora não seja possível afirmar que tenha havido uma intenção de diálogo com outras obras por parte do autor. Mas torna-se nítido que o trabalho de Ramos tem semelhanças com a obra de André Carneiro (1922-2014), em especial no seu ciclo de histórias da “Série Anarquia Sexual”, que inclui, entre outras, o conto “Diário da Nave Perdida” (1965), e os romances Piscina Livre (1980) e Amorquia (1992). O sexo livre de convenções e tabus, o culto à beleza física e artística, a falta de centros de poder constituído, a ausência de identidades nacionais definidas, como se toda a humanidade pertencesse a uma só sociedade, num projeto de homogeneidade, talvez gerido por um computador, numa criação de humanos a partir de um momento revolucionário. Pois tal evento também estaria embutido na criação do futuro de Ramos, quando da emergência de um Conselho dos Sete, que teria estabelecido as bases ideológicas e operacionais deste projeto social.
Se apenas ficássemos no enredo já estaríamos diante de uma obra de criação singular no panorama da FCB, mas o que de fato distingue O Outro Lado do Protocolo é o acréscimo do estilo, que acentua a sensação de estranhamento e certo incômodo com que a história é lida. O texto é narrado em primeira pessoa pelo protagonista que conta a história de forma retrospectiva, e de forma incompleta, já que toda a experiência que ele viveu foi recuperada de um bloquinho de anotações que ele levou em sua aventura no futuro. Ele mesmo admite que pode haver enganos de memória e equívocos de interpretação dos eventos, passando uma sensação de dubiedade sobre a veracidade dos acontecimentos.
Esta dúvida só aumenta por causa do estilo da prosa, construída por meio de frases curtas, mas elaboradas, o uso de palavras de uso pouco comum, e o recurso aos diálogos curtos e enxutos, sem maiores explicações. Há aqui, como afirma Causo – citando a pesquisadora Teresinka Pereira –, o recurso da metaficção, um tipo de ficção que mostra – ainda que nem sempre de forma assumida –, os mecanismos da própria criação da obra literária. Não que Ramos explicite isso no texto, mas é a forma como a escrita é elaborada, estabelecendo paralelos com escritos literários vinculados à correntes pós-modernistas, em que há quebras de categorias literárias tradicionais, no sentido de contar a história de uma outra perspectiva, que retire do próprio estilo recursos para sublinhar aspectos da história.
O Outro Lado do Protocolo também se aproxima de outras obras da FC como, por exemplo, o clássico Admirável Mundo Novo (Brave New World) (1932), de Aldous Huxley e Fuga no Século XXIII (Logan´s Run) (1967), de William F. Nolan e George Clayton Johnson. No primeiro caso pelo sexo livre, o uso de drogas, o governo de um computador, além da chegada do “selvagem”, no caso da história de Ramos, o visitante que não diz o nome. E no segundo pelo fato das pessoas viverem jovens e saudáveis, mas por um tempo definido, no caso 30 anos, eliminados, então, por um computador. Obra mais conhecida pelo filme, dirigido por Michael Anderson, e depois num seriado de TV, ambos homônimos ao livro.
Pois também na novela brasileira vive-se uma ilusão, um autoengano, pois com a chegada do estranho à sociedade, as certezas e convenções começam a ser postas em dúvida, embora neste caso não possamos falar de um herói que resolveu redimir a humanidade. Tudo o que Ricardo quer é cair fora logo desta sociedade. A todo momento pergunta ao casal que o trouxe quando eles vão embora, mesmo após se envolver com Stínia, a quem definitivamente rejeita depois que ela se rebela, não toma mais a água, e começa a envelhecer, tornando-se uma mulher flácida e enrugada. Sua partida final não deixa claro se seu comportamento fora dos padrões, meio sem querer – sem “bom tom”, como é profusamente citado ao longo da história –, foi suficiente para alterar radicalmente o hedonismo fatalista de daqui há cem anos.
Já no contexto da nossa FC, não foge à observação de que foi publicado no ano de encerramento da ditadura militar. Mesmo não tratando o tema diretamente, não deixa de ser uma alusão crítica ao menos sutil ao momento de transição política que o país viveu. Nesse sentido, portanto, poderia ser incluído num conjunto de obras posterior ao ciclo de Utopias de Distopias (1972-1982), naquilo que chamei de ficções da abertura, no meu artigo “Ventos de Mudança: A Ficção Científica Brasileira e a Transição Democrática” (2013).[1]

Paulo de Sousa Ramos nasceu em 1914 e, de acordo com Causo em seu posfácio, atuou como professor de teoria literária, e publicou outros livros como, por exemplo, a coletânea poética Clarescuro: Alguma Poesia (São Paulo: Editora Pannartz) e a prosa Os Senhores Assaltantes (São Paulo: Edicon, 1987).
Ler O Outro Lado do Protocolo é uma experiência duplamente instigante: pelo enredo surpreendente e a maneira singular como é contada. Reivindica um destaque justo na ficção científica brasileira, como uma de suas histórias mais interessantes e inteligentes. Alô editores, redescubram esta pérola. Os fãs e leitores do gênero – e fora dele também – merecem conhecê-la.
Marcello Simão Branco


[1]     Publicado em Semina: Ciências Sociais e Humanas, vol. 34, no, 2, 2013. Os outros livros incluídos são: Não Verás País Nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão; A Invasão (1979), de José Antonio Severo; A Ordem do Dia (1983), de Márcio Souza; Silicone XXI (1985), de Alfredo Sirkis e Horizonte de Eventos (1986), de Jorge Luiz Calife.

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