O
Outro Lado do Protocolo, Paulo de Sousa Ramos. Posfácio de
Roberto de Sousa Causo. 56 páginas. Brasópolis: Edgar Guimarães Editor, Coleção
Especulativa, volume 2, 1999. Lançado originalmente em 1985.
Esta
é uma daquelas histórias quase ocultas dentro da ficção científica brasileira.
A novela O Outro Lado do Protocolo ficou praticamente invisível aos
olhos atentos dos fãs por quase quinze anos, até ser relançada, de forma
artesanal, pela coleção organizada pelo escritor Roberto de Sousa Causo.
Isso
porque ela foi publicada em 1985 pela obscura Editora Soma, de São Paulo – veja
a capa ao lado. Deve ter tido uma tiragem pequena e distribuição precária, pois
não foi incluída nem no completíssimo Quem é Quem na Ficção Científica –
Volume II: Catálogo de Ficção Científica em Língua Portuguesa (1921-1993),
do saudoso fã e pesquisador R.C. Nascimento.
O
Outro Lado do Protocolo é uma novela que usa o recurso da
viagem no tempo, de importância sutil na trama, para nos transportar para uma
sociedade utópica num futuro indefinido. A história começa com a visita do
protagonista à casa de um amigo dos tempos de escola, Tamerlão. E, de imediato,
somos expostos a um estranhamento que é comum ao visitante. Há outros costumes,
como a disponibilidade sexual de Tânia, esposa do amigo. O casal convida o
protagonista a lhes acompanhar numa viagem à casa dos pais da mulher. Mas, para
isso, eles entram numa máquina do tempo e vão para o futuro. Nesta época existe
uma sociedade que vive no décimo decênio da Grande Transformação, ou seja,
aproximadamente cem anos à frente. Como o protagonista – que passa a ser
chamado de Ricardo pelas pessoas desta época, apesar de seus protestos
veementes, pois, por modéstia, não quer revelar o nome –, vem logo a notar a
única coisa em comum com o lugar em que visitou o casal: a mesma
disponibilidade sexual das mulheres. Elas se oferecem prontamente a qualquer
homem que achem interessante. E é ofensivo recusar!
Contudo,
se esta semelhança já seria desconcertante há outros costumes diferentes neste
futuro. As pessoas não envelhecem, tem sempre a aparência jovem e não há
doenças. Mas tem um tempo de vida definido a cumprir. Quando os homens
completam 78 anos e as mulheres 75 surge uma mancha escura no corpo, sinal de
que é chegada a hora de se apresentar voluntariamente para ser executado por um
computador.
É
uma sociedade aparentemente funcional e satisfeita, como cabe a toda utopia.
Mas, de alguma forma, a presença do visitante do passado irá colocar toda a
estrutura em dúvida, transformando a convivência social. Pois parte das pessoas
passa a questionar o que vem a ser o tal do envelhecimento e as doenças a ele
associadas. Abre-se um debate entre grupos, os Sete Poetas, os Setenta, os
Setecentos, tudo a partir do número sete, referência para várias instituições e
costumes.
Ricardo
conhece Stínia, uma atraente recepcionista do Hospital, por quem se envolve. Na
verdade, mais do ponto de vista sexual, do que emocional, embora tenha
dificuldades em aceitar se relacionar intimamente com uma mulher de 65 anos,
ele com apenas 30. Na verdade, como descobrirá depois, ela tinha 75 anos, já
próxima da morte, portanto.
Como
é comum a tantas narrativas de sociedades idealizadas, um supercomputador
administra e dirige a vida das pessoas. Tudo funciona a partir de seu comando e
logística, cabendo às pessoas atividades mais prazerosas (sexo livre) e lúdicas
(círculos artísticos e intelectuais). Nesta aparente liberdade, Stínia é uma
das sete integrantes do grupo dos Sete Poetas – concursados e aprovados não
segundo seu talento literário, mas devido ao alto nível hormonal de seu
organismo.
Depois
que Stínia revela a Ricardo que mentira a idade para enganar o computador,
Ricardo procura ajudá-la, e buscar mais respostas às dúvidas sobre esta
sociedade de pendor hedonista. Com isso descobre que, para além das duas pílulas
azuis que todas as pessoas tomam diariamente – “para se sentirem bem” –, é o
consumo da água, que as tornam bonitas e saudáveis, eliminando a distinção
entre jovens e idosos, tão marcante no lugar de onde veio – a nossa época.
Como
observa Roberto de Sousa Causo no texto que complementa o livro, “A Narrativa
Metaficional de Sousa Ramos”, O Outro Lado do Protocolo se insere numa
tradição de distopias da ficção científica brasileira, embora não seja possível
afirmar que tenha havido uma intenção de diálogo com outras obras por parte do
autor. Mas torna-se nítido que o trabalho de Ramos tem semelhanças com a obra
de André Carneiro (1922-2014), em especial no seu ciclo de histórias da “Série
Anarquia Sexual”, que inclui, entre outras, o conto “Diário da Nave Perdida”
(1965), e os romances Piscina Livre (1980) e Amorquia (1992). O
sexo livre de convenções e tabus, o culto à beleza física e artística, a falta
de centros de poder constituído, a ausência de identidades nacionais definidas,
como se toda a humanidade pertencesse a uma só sociedade, num projeto de
homogeneidade, talvez gerido por um computador, numa criação de humanos a
partir de um momento revolucionário. Pois tal evento também estaria embutido na
criação do futuro de Ramos, quando da emergência de um Conselho dos Sete, que
teria estabelecido as bases ideológicas e operacionais deste projeto social.
Se
apenas ficássemos no enredo já estaríamos diante de uma obra de criação
singular no panorama da FCB, mas o que de fato distingue O Outro Lado do
Protocolo é o acréscimo do estilo, que acentua a sensação de estranhamento
e certo incômodo com que a história é lida. O texto é narrado em primeira
pessoa pelo protagonista que conta a história de forma retrospectiva, e de
forma incompleta, já que toda a experiência que ele viveu foi recuperada de um
bloquinho de anotações que ele levou em sua aventura no futuro. Ele mesmo
admite que pode haver enganos de memória e equívocos de interpretação dos
eventos, passando uma sensação de dubiedade sobre a veracidade dos
acontecimentos.
Esta
dúvida só aumenta por causa do estilo da prosa, construída por meio de frases
curtas, mas elaboradas, o uso de palavras de uso pouco comum, e o recurso aos
diálogos curtos e enxutos, sem maiores explicações. Há aqui, como afirma Causo
– citando a pesquisadora Teresinka Pereira –, o recurso da metaficção, um tipo
de ficção que mostra – ainda que nem sempre de forma assumida –, os mecanismos
da própria criação da obra literária. Não que Ramos explicite isso no texto,
mas é a forma como a escrita é elaborada, estabelecendo paralelos com escritos
literários vinculados à correntes pós-modernistas, em que há quebras de
categorias literárias tradicionais, no sentido de contar a história de uma
outra perspectiva, que retire do próprio estilo recursos para sublinhar
aspectos da história.
O
Outro Lado do Protocolo também se aproxima de outras obras
da FC como, por exemplo, o clássico Admirável Mundo Novo (Brave New
World) (1932), de Aldous Huxley e Fuga no Século XXIII (Logan´s
Run) (1967), de William F. Nolan e George Clayton Johnson. No primeiro caso
pelo sexo livre, o uso de drogas, o governo de um computador, além da chegada
do “selvagem”, no caso da história de Ramos, o visitante que não diz o nome. E
no segundo pelo fato das pessoas viverem jovens e saudáveis, mas por um tempo
definido, no caso 30 anos, eliminados, então, por um computador. Obra mais
conhecida pelo filme, dirigido por Michael Anderson, e depois num seriado de
TV, ambos homônimos ao livro.
Pois
também na novela brasileira vive-se uma ilusão, um autoengano, pois com a
chegada do estranho à sociedade, as certezas e convenções começam a ser postas
em dúvida, embora neste caso não possamos falar de um herói que resolveu
redimir a humanidade. Tudo o que Ricardo quer é cair fora logo desta sociedade.
A todo momento pergunta ao casal que o trouxe quando eles vão embora, mesmo
após se envolver com Stínia, a quem definitivamente rejeita depois que ela se
rebela, não toma mais a água, e começa a envelhecer, tornando-se uma mulher
flácida e enrugada. Sua partida final não deixa claro se seu comportamento fora
dos padrões, meio sem querer – sem “bom tom”, como é profusamente citado ao
longo da história –, foi suficiente para alterar radicalmente o hedonismo
fatalista de daqui há cem anos.
Já
no contexto da nossa FC, não foge à observação de que foi publicado no ano de
encerramento da ditadura militar. Mesmo não tratando o tema diretamente, não
deixa de ser uma alusão crítica ao menos sutil ao momento de transição política
que o país viveu. Nesse sentido, portanto, poderia ser incluído num conjunto de
obras posterior ao ciclo de Utopias de Distopias (1972-1982), naquilo que
chamei de ficções da abertura, no meu artigo “Ventos de Mudança: A
Ficção Científica Brasileira e a Transição Democrática” (2013).[1]
Paulo
de Sousa Ramos nasceu em 1914 e, de acordo com Causo em seu posfácio, atuou
como professor de teoria literária, e publicou outros livros como, por exemplo,
a coletânea poética Clarescuro: Alguma Poesia (São Paulo: Editora
Pannartz) e a prosa Os Senhores Assaltantes (São Paulo: Edicon, 1987).
Ler
O Outro Lado do Protocolo é uma experiência duplamente instigante: pelo enredo
surpreendente e a maneira singular como é contada. Reivindica um destaque justo
na ficção científica brasileira, como uma de suas histórias mais interessantes
e inteligentes. Alô editores, redescubram esta pérola. Os fãs e leitores do
gênero – e fora dele também – merecem conhecê-la.
– Marcello
Simão Branco
[1] Publicado
em Semina: Ciências Sociais e Humanas, vol. 34, no, 2, 2013. Os
outros livros incluídos são: Não Verás País Nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão; A Invasão (1979), de José Antonio
Severo; A Ordem do Dia (1983), de
Márcio Souza; Silicone XXI (1985), de
Alfredo Sirkis e Horizonte de Eventos
(1986), de Jorge Luiz Calife.
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