O Terror
(The Terror: A Novel), Dan Simmons. Tradução de Alexandre Martins. Rio de
Janeiro: Editora Rocco, 2017. 751 páginas. Lançamento original em 2007.
Em
1845 partiram da Inglaterra os navios HMS Erebus e o Terror da Marinha real com
o objetivo de descobrir e atravessar a Passagem Noroeste, que liga os oceanos
Atlântico e Pacífico através do Círculo Polar Ártico, situada no extremo norte
do Canadá.
A
chamada Expedição Franklin, nome dado por causa do comando do capitão Sir John
Franklin, do Erebus, contava com uma tripulação de mais de cem homens,
equipamentos modernos e provisões para cerca de três anos. Estavam, portanto,
preparados para a travessia e a viagem pelo Pacífico adentro. Mas tiveram o
infortúnio de serem surpreendidos por um inverno rigoroso fazendo com que os dois
barcos ficassem encalhados em meio a massas de gelo colossais e temperaturas
dezenas de graus abaixo de zero.
O
enorme romance, de mais de 700 páginas que retrata um dos acontecimentos históricos
mais dramáticos da Marinha real britânica, é narrado de forma não linear,
entremeando os capítulos num vai e vem, entre o início da expedição e o drama
que passam a viver quando os navios encalham. Apenas mais ou menos da metade em
diante a história assume uma linha narrativa mais convencional, embora sempre
abordada do ponto de vista de um personagem, que recebe o nome do capítulo. E
é por meio deste recurso que a história é contada principalmente através do
capitão Francis Crozier, do Terror, que é quem de fato assume o comando da
expedição após a morte do capitão Franklin, em meados de 1847. Outro personagem
interessante é o Dr. Goodsir, que relata em um diário tudo aquilo que sente e
testemunha, principalmente do ponto de vista médico. Assim, o nível dos
detalhes dos problemas que enfrenta, como doenças e cirurgias são bastante
detalhados e às vezes indigestos para quem não está acostumado a lidar com
situações deste tipo. Esta escolha do autor dá ao livro uma perspectiva mais
particular do drama geral, ganhando em verossimilhança das situações e
intimidade com os personagens, tornando-os quase como confidentes junto ao
leitor.
Chama
a atenção também o grau profundo e bem documentado com que Simmons narra o
drama naval, com muitas informações e detalhes sobre a rotina dos navios, suas
características de trabalho e funcionamento, bem como das funções de cada
tripulante. Mas, acima de tudo, do clima atmosférico tenebroso – sim, esta é a
melhor palavra que encontro – que se instaura na vida dos cento e poucos
homens. Frio extremo, escuridão que dura meses, alimentos de má qualidade e
estragados, ferimentos e doenças em profusão, racionamento do carvão que mantém
os navios minimamente aquecidos, e uma moral cada vez mais baixa entre os
tripulantes, o que só torna o convívio mais tenso e perigoso, inclusive para a
linha de comando.
Este
drama durou três invernos e com a perda do Erebus, que afundou parcialmente, e
a constatação de que o Terror teria poucas chances de voltar a navegar mesmo
com um degelo, as tripulações dos dois navios partem rumo ao sul (arrastando
sobre a neve trenós e pequenos barcos), para tentar encontrar uma saída para
sobreviverem.
Como
já dá para perceber este drama já é, por si, terror. E ainda mais pungente quando sabemos que tudo isso ocorreu
de verdade. Mas a este contexto o autor acrescenta seu toque ficcional,
tornando a história algo mais do que um romance histórico competente. Pois os
homens são também aterrorizados pela presença de um monstro, quase invisível,
pois é branco como a neve, e que fica à espreita e só aparece no momento final do
ataque, quando é tarde demais. Descomunal, tem quatro metros de altura e por
ser muito parecido com um urso polar, confunde ainda mais suas vítimas.
A
fera, que surgiu não se sabe de onde, circunda os navios e costuma atacar
quando os tripulantes têm de sair deles por alguma razão. Mas aos poucos também
começa a atacar as embarcações, matando com muita facilidade e devorando suas
vítimas. Sim, ela adora carne humana.
Embora
não afirme nos “Agradecimentos” é possível aludir que Simmons se inspirou no
conto clássico “Quem Anda Aí?”[1] (“Who
Goes There?”,
1938), de John W. Campbell, Jr., adaptado três vezes ao cinema, como O Monstro do Ártico (The Thing, 1951), O Enigma de Outro Mundo (The
Thing, 1982), e A Coisa (The Thing, 2011). Mas ele chega, ao
menos, a incluir entre àqueles que dedica o livro, o diretor Christian Nyby e o
produtor Howard Hawks, da primeira versão para o cinema. Nas duas primeiras
versões o monstro é um alienígena predador que ficou congelado por milhares de
anos até ser despertado, inadvertidamente, por uma expedição no Ártico. Na
terceira é encontrado numa nave espacial sob o gelo num planeta – um pouco
semelhante ao clássico Alien, o Oitavo
Passageiro (Alien, 1979), de Ridley Scott.
Mas ao invés, Simmons investe numa
perspectiva sobrenatural para justificar a existência do monstro, chamado de
Tuunbaq pelos nativos inuits da região, remetido à mitologia de criação do mundo deles. E isso fica exemplificado quando o capitão Crozier, depois de
ferido em uma emboscada por um grupo de tripulantes amotinados, é salvo por Lady
Silêncio, uma esquimó que havia sido adotada pela expedição após perder seu
companheiro, e que recebeu este nome porque, misteriosamente, não tinha língua.
Pois ela não é atacada pela fera, ao contrário, interage amistosamente. De acordo
com a mitologia, os ataques aos homens brancos, forasteiros, seria uma forma do monstro proteger a cultura e a vida dos
inuit.
Embora longo o livro não decai em
interesse, e é mesmo notável como Simmons não enrola, pois em todos os
capítulos, não só aspectos particulares são contados, mas também novas e
dramáticas situações surgem. Há sempre um sentimento de apreensão sobre o que
virá, e o livro está repleto de cenas visualmente poderosas, difíceis de
esquecer. Os ataques furtivos e cruéis de Tuunbaq, as descrições do inverno
escuro e rigoroso, as tempestades de raios, a aurora boreal, os sonhos
premonitórios do capitão Crozier – ele mesmo com tendências à paranormalidade
–, o encontro inesperado do tripulante John Irving com um grupo de esquimós, o
destino cruel de vários personagens. Neste último caso, inclusive, chega-se a
um ponto em que a leitura fica penosa, pois vários personagens morrem, um a um,
seja de doenças, de frio, de fome, dos assassinatos ou pelas garras da fera
sobrenatural.
Há
também certa ambiguidade com o título do livro. Afinal, de que terror mesmo se
refere?
A do navio que curiosa e estranhamente chama terror? Do frio terrível que inviabiliza tragicamente a expedição?
– como aconteceu na vida real –, ou do monstro assassino, não por acaso,
apelidado pelos tripulantes de O Terror?
O
romance foi finalista do British Fantasy Award em 2008 e recebeu uma adaptação
na TV – que foi o que motivou a Editora Rocco a traduzir o livro, como informa,
inclusive, na capa. Produzido por Steven Spielberg e Ridley Scott a série de
mesmo nome foi ao ar em 2018 pelo canal fechado AMC, com oito episódios. Não vi
o seriado, mas o livro já me bastou para considerar Dan Simmons como um dos
mais talentosos contadores de história especulativa das últimas décadas. Autor
da premiada série de FC espacial Hiperyon
(1989), dele antes havia lido o forte e sofrido A Canção de Kali (Song of
Kali, 1985), publicado em Portugal pela Editora Saída de Emergência, em
2009.
O que
fica da leitura de mais de um mês de O
Terror é que Simmons, para além da narrativa clara e fluente que prende o
leitor, dos personagens vivos e complexos – semelhantes aos dos craques Stephen
King e Peter Straub –, tem como maior virtude a capacidade de nos tornar
próximos, cúmplices mesmo dos personagens, seus sonhos, medos, dramas,
esperanças, e nos fazer sentir tudo isso com eles. Sobretudo por isso, O Terror não é apenas um livro grande,
mas um grande livro.
– Marcello Simão Branco
[1] Publicado na antologia O que Será o Futuro? (The Future in Question), organizada por
Isaac Asimov, Coleção Argonauta no. 327, Portugal, 1984.
Eu vi a série. Um pouco arrastada nos primeiros episódios, mas depois engrena. O monstro também demora para aparecer, vemos apenas as consequências de seus ataques.
ResponderExcluirBom, no livro não é assim. Ação e suspense do começo ao fim e, na maior parte das vezes, com o monstro presente.
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