sábado, 23 de março de 2019

O Terror


O Terror (The Terror: A Novel), Dan Simmons. Tradução de Alexandre Martins. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2017. 751 páginas. Lançamento original em 2007.


Em 1845 partiram da Inglaterra os navios HMS Erebus e o Terror da Marinha real com o objetivo de descobrir e atravessar a Passagem Noroeste, que liga os oceanos Atlântico e Pacífico através do Círculo Polar Ártico, situada no extremo norte do Canadá.
A chamada Expedição Franklin, nome dado por causa do comando do capitão Sir John Franklin, do Erebus, contava com uma tripulação de mais de cem homens, equipamentos modernos e provisões para cerca de três anos. Estavam, portanto, preparados para a travessia e a viagem pelo Pacífico adentro. Mas tiveram o infortúnio de serem surpreendidos por um inverno rigoroso fazendo com que os dois barcos ficassem encalhados em meio a massas de gelo colossais e temperaturas dezenas de graus abaixo de zero.
O enorme romance, de mais de 700 páginas que retrata um dos acontecimentos históricos mais dramáticos da Marinha real britânica, é narrado de forma não linear, entremeando os capítulos num vai e vem, entre o início da expedição e o drama que passam a viver quando os navios encalham. Apenas mais ou menos da metade em diante a história assume uma linha narrativa mais convencional, embora sempre abordada do ponto de vista de um personagem, que recebe o nome do capítulo. E é por meio deste recurso que a história é contada principalmente através do capitão Francis Crozier, do Terror, que é quem de fato assume o comando da expedição após a morte do capitão Franklin, em meados de 1847. Outro personagem interessante é o Dr. Goodsir, que relata em um diário tudo aquilo que sente e testemunha, principalmente do ponto de vista médico. Assim, o nível dos detalhes dos problemas que enfrenta, como doenças e cirurgias são bastante detalhados e às vezes indigestos para quem não está acostumado a lidar com situações deste tipo. Esta escolha do autor dá ao livro uma perspectiva mais particular do drama geral, ganhando em verossimilhança das situações e intimidade com os personagens, tornando-os quase como confidentes junto ao leitor.
Chama a atenção também o grau profundo e bem documentado com que Simmons narra o drama naval, com muitas informações e detalhes sobre a rotina dos navios, suas características de trabalho e funcionamento, bem como das funções de cada tripulante. Mas, acima de tudo, do clima atmosférico tenebroso – sim, esta é a melhor palavra que encontro – que se instaura na vida dos cento e poucos homens. Frio extremo, escuridão que dura meses, alimentos de má qualidade e estragados, ferimentos e doenças em profusão, racionamento do carvão que mantém os navios minimamente aquecidos, e uma moral cada vez mais baixa entre os tripulantes, o que só torna o convívio mais tenso e perigoso, inclusive para a linha de comando.
Este drama durou três invernos e com a perda do Erebus, que afundou parcialmente, e a constatação de que o Terror teria poucas chances de voltar a navegar mesmo com um degelo, as tripulações dos dois navios partem rumo ao sul (arrastando sobre a neve trenós e pequenos barcos), para tentar encontrar uma saída para sobreviverem.
Como já dá para perceber este drama já é, por si, terror. E ainda mais pungente quando sabemos que tudo isso ocorreu de verdade. Mas a este contexto o autor acrescenta seu toque ficcional, tornando a história algo mais do que um romance histórico competente. Pois os homens são também aterrorizados pela presença de um monstro, quase invisível, pois é branco como a neve, e que fica à espreita e só aparece no momento final do ataque, quando é tarde demais. Descomunal, tem quatro metros de altura e por ser muito parecido com um urso polar, confunde ainda mais suas vítimas.
A fera, que surgiu não se sabe de onde, circunda os navios e costuma atacar quando os tripulantes têm de sair deles por alguma razão. Mas aos poucos também começa a atacar as embarcações, matando com muita facilidade e devorando suas vítimas. Sim, ela adora carne humana.
Embora não afirme nos “Agradecimentos” é possível aludir que Simmons se inspirou no conto clássico “Quem Anda Aí?[1] (“Who Goes There?”, 1938), de John W. Campbell, Jr., adaptado três vezes ao cinema, como O Monstro do Ártico (The Thing, 1951), O Enigma de Outro Mundo (The Thing, 1982), e A Coisa (The Thing, 2011). Mas ele chega, ao menos, a incluir entre àqueles que dedica o livro, o diretor Christian Nyby e o produtor Howard Hawks, da primeira versão para o cinema. Nas duas primeiras versões o monstro é um alienígena predador que ficou congelado por milhares de anos até ser despertado, inadvertidamente, por uma expedição no Ártico. Na terceira é encontrado numa nave espacial sob o gelo num planeta – um pouco semelhante ao clássico Alien, o Oitavo Passageiro (Alien, 1979), de Ridley Scott.
Mas ao invés, Simmons investe numa perspectiva sobrenatural para justificar a existência do monstro, chamado de Tuunbaq pelos nativos inuits da região, remetido à mitologia de criação do mundo deles. E isso fica exemplificado quando o capitão Crozier, depois de ferido em uma emboscada por um grupo de tripulantes amotinados, é salvo por Lady Silêncio, uma esquimó que havia sido adotada pela expedição após perder seu companheiro, e que recebeu este nome porque, misteriosamente, não tinha língua. Pois ela não é atacada pela fera, ao contrário, interage amistosamente. De acordo com a mitologia, os ataques aos homens brancos, forasteiros, seria uma forma do monstro proteger a cultura e a vida dos inuit.
Embora longo o livro não decai em interesse, e é mesmo notável como Simmons não enrola, pois em todos os capítulos, não só aspectos particulares são contados, mas também novas e dramáticas situações surgem. Há sempre um sentimento de apreensão sobre o que virá, e o livro está repleto de cenas visualmente poderosas, difíceis de esquecer. Os ataques furtivos e cruéis de Tuunbaq, as descrições do inverno escuro e rigoroso, as tempestades de raios, a aurora boreal, os sonhos premonitórios do capitão Crozier – ele mesmo com tendências à paranormalidade –, o encontro inesperado do tripulante John Irving com um grupo de esquimós, o destino cruel de vários personagens. Neste último caso, inclusive, chega-se a um ponto em que a leitura fica penosa, pois vários personagens morrem, um a um, seja de doenças, de frio, de fome, dos assassinatos ou pelas garras da fera sobrenatural.
Há também certa ambiguidade com o título do livro. Afinal, de que terror mesmo se refere? A do navio que curiosa e estranhamente chama terror? Do frio terrível que inviabiliza tragicamente a expedição? – como aconteceu na vida real –, ou do monstro assassino, não por acaso, apelidado pelos tripulantes de O Terror?
O romance foi finalista do British Fantasy Award em 2008 e recebeu uma adaptação na TV – que foi o que motivou a Editora Rocco a traduzir o livro, como informa, inclusive, na capa. Produzido por Steven Spielberg e Ridley Scott a série de mesmo nome foi ao ar em 2018 pelo canal fechado AMC, com oito episódios. Não vi o seriado, mas o livro já me bastou para considerar Dan Simmons como um dos mais talentosos contadores de história especulativa das últimas décadas. Autor da premiada série de FC espacial Hiperyon (1989), dele antes havia lido o forte e sofrido A Canção de Kali (Song of Kali, 1985), publicado em Portugal pela Editora Saída de Emergência, em 2009.
O que fica da leitura de mais de um mês de O Terror é que Simmons, para além da narrativa clara e fluente que prende o leitor, dos personagens vivos e complexos – semelhantes aos dos craques Stephen King e Peter Straub –, tem como maior virtude a capacidade de nos tornar próximos, cúmplices mesmo dos personagens, seus sonhos, medos, dramas, esperanças, e nos fazer sentir tudo isso com eles. Sobretudo por isso, O Terror não é apenas um livro grande, mas um grande livro.

– Marcello Simão Branco



[1] Publicado na antologia O que Será o Futuro? (The Future in Question), organizada por Isaac Asimov, Coleção Argonauta no. 327, Portugal, 1984.

2 comentários:

  1. Eu vi a série. Um pouco arrastada nos primeiros episódios, mas depois engrena. O monstro também demora para aparecer, vemos apenas as consequências de seus ataques.

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    1. Bom, no livro não é assim. Ação e suspense do começo ao fim e, na maior parte das vezes, com o monstro presente.

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