sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Regresso à Vida


Regresso à Vida (Recalled to Life), Robert Silverberg. Tradução de José Lourenço Galego. Publicações Europa-América, coleção Ficção Científica no. 29, 1982, 176 páginas. Lançamento original em 1958.

Quando Silverberg escreveu este romance ele estava no auge de sua produtividade. Os anos 1950 foram o de maior quantidade de textos escritos e publicados, principalmente contos, e de aventuras espaciais, embora já estivesse latente, também, sua versatilidade em abordar diferentes temas dentro da ficção científica.
Talvez por isso e também para atenuar sua imagem de escritor de contos curtos, rápidos e sem grande mérito literário, ele escolheu um tema mais difícil, procurando uma abordagem mais realista, conforme ele explica na introdução:
“Tinha a intenção de que este livro tivesse a textura de um romance linear, com um conteúdo nada extraordinário, à exceção da grande hipótese que o faria entrar para o campo da ficção científica e que seria a espinha dorsal de todo o enredo: e se a morte pudesse tornar-se um processo reversível? Queria explorar as consequências sociais de uma descoberta assombrosa; e queria explorar essas consequências não no terreno asséptico de um universo de ficção científica, mas num mundo pouco diferente, nas suas reações fundamentais, do que conhecemos agora.”
Mesmo que história tenha sido primeira publicada em duas edições da revista Infinity Science Fiction, em junho e agosto de 1958, ela enfrentou dificuldades em ser aceita posteriormente para o formato de livro. Pois, de acordo com Silverberg, os editores a achavam “muito séria” e com riscos de “deprimir os leitores”.
Contudo, não é um romance mainstream. Afinal estamos diante da possibilidade de ressurreição após a morte. O que aconteceria se a ciência descobrisse uma maneira de reviver os que morreram? Já parou para pensar nisso? Afinal a morte é dada como uma coisa inevitável e definitiva. E de certa forma somos mesmos condicionados a acreditar e, mais que isso, aceitar este fato.
Mas no campo das hipóteses que só uma ficção especulativa como a científica pode oferecer, o livro nos apresenta esta possibilidade e discute suas consequências, principalmente do ponto de vista social, político e religioso.
Estamos em 2033 e a história é contada a partir de James Harker, advogado que tenta retomar sua carreira, após uma experiência frustrante como governador do estado de Nova York. Isso porque ele tentou implementar algumas reformas políticas que acabaram custando sua reeleição e mesmo sua permanência na vida pública.
Ele é procurado por um representante do misterioso Laboratório Beller para ser o seu conselheiro jurídico e porta-voz. Utilizando a herança deixada por um multimilionário, o laboratório usou o dinheiro para realizar pesquisas que pudessem, finalmente, vencer a morte.
Uma equipe de médicos e cientistas desenvolveu uma tecnologia capaz de reviver pessoas que tenham morrido há até vinte e quatro horas, e com o corpo em bom estado de conservação e sem grandes traumas nos órgãos internos. Não havia a chance de ressuscitação em casos mais complicados, como câncer em estágio avançado e acidentes que danificassem gravemente o corpo.
Contrariado e descrente a princípio Harker testemunha a ressuscitação de cães e, posteriormente, de um ser humano, e aceita o emprego. É uma chance de servir a uma causa importante e se redimir politicamente perante a opinião pública.
 Mas o tema está longe de ser recebido com entusiasmo. Vários setores da sociedade veem com descrença e heresia a possibilidade de reviver alguém que morreu. Primeiramente há a dúvida de que tal procedimento seja possível, a seguir se ele deve realmente ser realizado, pois não seria dado aos homens interferir num desígnio divino, de haver criado o homem como um ser mortal. Adicionalmente, se a pessoa morre a alma sai do corpo, mas se ele revive, estaria sem a sua alma, sendo não mais que um espectro, um zumbi, indigno de conviver novamente com os vivos.
No fundo tais reações estão no campo da religião e suas diferentes crenças e dogmas, semelhantes a outras descobertas revolucionárias da ciência, como a de que a Terra é uma esfera, de que não somos o centro do universo e de que fazemos parte de um processo evolutivo dos seres vivos do nosso planeta. Mas concordo que o tema da ressurreição seria ainda mais controverso.
Estas dúvidas também estão com Harker, mas assumidas principalmente como uma dor interior intensa, já que ele perdera sua filha Eva, alguns anos atrás. Teria sido possível salvá-la do afogamento, mas a tecnologia chegou tarde demais.
Então também por este motivo pessoal Harker tem interesse que a descoberta seja aceita e legalmente regularizada. Mas enfrenta batalhas, antes de tudo, internas, no interior do próprio laboratório, pois dois de seus integrantes divulgam a notícia antes que a técnica estivesse totalmente segura, causando, além da negação de ordem moral e religiosa, também outra de caráter prático. Isso porque de cada seis pessoas revividas uma recuperou suas funções fisiológicas, mas não as do cérebro.
A história envereda por uma batalha política pela luta ao reconhecimento e legalidade do procedimento, em torno dos dois partidos políticos nos Estados Unidos do século XXI: o Partido Nacional-Liberal e o Partido Conservador. Como se vê sucessores dos Democratas e Republicanos, que teriam sido dissolvidos numa crise política no início dos anos 1990.
Ao situar o assunto num recorte mais político-partidário, ao que parece, Silverberg está refletindo, ainda que de maneira indireta e implícita, sobre as opções e valores dos dois maiores partidos norte-americanos, numa fase de grandes contestações e mudanças em seu país: os direitos civis das mulheres e os direitos políticos dos negros, sobre o aborto, drogas liberdade sexual, meio-ambiente. Mas creio que nada chegaria perto do que aconteceria se a possibilidade de ressuscitar a vida fosse possível.
Entre o final dos anos 1960 e início dos 1970 Silverberg estava novamente em uma fase de grande criatividade, mas desta vez com contos, novelas e romances de enorme ousadia temática e qualidade literária. Para citar alguns exemplos: o conto “Passageiros” (“Passengers”, 1967), a novela “Asas da Noite (“Nigthwings”, 1968) e o romance Uma Pequena Morte (Dying Inside, 1971). Nesse contexto imaginou relançar Regresso à Vida, mas após receber o sinal verde para enviar o original a uma editora percebeu outra possível razão para que a história tivesse sido rejeita por algumas editoras no início dos anos 1960: estava mal escrita e com várias cenas melodramáticas. Assim, pela primeira vez em sua carreira, Silverberg reescreveu o livro inteiro, mantendo-o como um texto relativamente curto (é pouco mais do que uma novela), mas bastante centrado sobre as discussões a respeito do tema principal. E é esta a versão, de 1971, que foi traduzida e publicada em língua portuguesa. Ao leitor que porventura procure pelo livro, atenção. Saiu uma outra edição em Portugal com o título de Regresso à Vida, mas trata-se da tradução de outra obra do Silverberg, o romance To Live Again (1969), publicado pela Galeria Panorama, em sua Colecção Antecipação no. 47.
Não li a versão original de Recalled to Life, mas pode-se perceber que estamos diante de um texto fluente e com boa densidade dramática, embora pudesse, já que o reescreveu, ter avançado mais em sua estrutura – com a introdução de mais personagens e outras linhas narrativas, como, por exemplo, de como seria a nova vida de um ressuscitado. Em todo caso, a boa recepção desta nova versão o incentivou a publicar a novela premiada com o Nebula de 1975 “Born with the Dead” (1973), que ele mesmo considera uma espécie de continuação desta sua primeira investida no tema da ressurreição.

– Marcello Simão Branco

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