quarta-feira, 2 de julho de 2025

A Rainha do Ignoto



 

A Rainha do Ignoto, Emília Freitas. Capa: Erika Tani Azuma e Rodrigo Disperati. 350 páginas. São Paulo: Folha de S. Paulo, coleção Folha Clássicos da Literatura Luso-Brasileira, 2023. Lançamento original em 1899.

 

A publicação deste livro nesta coleção indica a chegada da autora ao centro principal da literatura brasileira. Pois há somente nomes canonizados como, por exemplo, Machado de Assis, Luís de Camões, Castro Alves, Eça de Queiroz, José de Alencar etc. Talvez sinal de tempos mais arejados e menos preconceituosos, já que a cearense Emília Freitas (1855-1908) escreveu um romance especulativo, entre a ficção científica e o fantástico sobrenatural.

Chama a atenção, de saída, inclusive, que ela mesma pede desculpas à comunidade literária, obviamente, masculina, pela ousadia de cometer uma obra como essa. Diz que não tem padrinho e reconhece que a protagonista pode ser vista como muito extravagante ou exagerada. Mas afirma que é isso que faz dela alguém que veio para abalar as certezas da realidade, talvez mudar um mundo tão cheio de injustiças.

O romance tem início com a volta do doutor Edmundo ao sertão do Ceará, após ter ido viajar pela Europa como prêmio por ter se formado advogado. Rapidamente ele vira o centro das atenções da comunidade local, simples em seus comportamentos e costumes, especialmente das jovens que esperam a oportunidade de casar e assim “ser alguém na vida”. Inclusive, a autora retrata com muita acuidade e verossimilhança o modo de vida das pessoas do interior, tão rotineiras, religiosas, com horizontes limitados ao mundo que os cerca, enfim, tão conservadores. Nesse aspecto, Emília aborda esta perspectiva principalmente do ponto de vista feminino: dos valores e anseios das jovens, voltadas aos afazeres domésticos, aos encontros sociais em igrejas e reuniões de famílias, e suas artimanhas para conseguir um homem, o único meio de lhes dar algum reconhecimento social e alguma liberdade do controle da família.

Nesse contexto, estas mulherzinhas do mundo privado não encantam ao cosmopolita Edmundo e ele fica fascinado ao saber de uma lenda local sobre uma misteriosa mulher que, a altas horas da noite, por vezes navega no rio Jaguaribe, entoando canções melancólicas. Para o povo ela é conhecida como A Funesta, e recomendam a Edmundo que a esqueça. Mas, claro, ele quer saber quem é essa figura em tudo diferente das outras mulheres do povoado.

Edmundo conhece Probo, que tem a fama de caçar onças, e presta serviços à mulher também chamada de A Rainha do Ignoto. Pois Probo lhe conta em detalhes o que sabe sobre ela, e Edmundo resolve partir numa jornada para saber mais. A Rainha possui três navios, tripulados só por mulheres, mas isso é só o início de suas descobertas. Disfarçado de uma mulher muda que serve como ordenança da Rainha, Edmundo sobe a bordo do Tufão e desembarca na Ilha do Nevoeiro – que não é vista por quem não sabe de sua existência – onde irá descobrir o Reino do Ignoto, governado pela rainha, a mulher que tanto o fascina. Aos poucos, ao descobrir os detalhes desta sociedade secreta de mulheres, o encanto pela pessoa da Rainha se transforma em espanto pela organização e os resultados deste reino.

Com suas naus, a Rainha e sua paladinas desembarcam de porto em porto, de cidade em cidade pelo Brasil afora para realizar suas missões de caridade e correção de injustiças. A rainha e suas seguidoras se utilizam do poder do hipnotismo para iludir as pessoas, fazendo-as ver coisas sugeridas por elas, bem como se comportar de acordo com seus objetivos, nada lembrando após o ocorrido. Pois o elemento principal de identificação desta obra com a FC está, justamente, na utilização dos poderes hipnóticos, muito em voga na segunda metade do século XIX, ao lado do espiritismo, que fará sua entrada num certo momento da histórica em tons mais sobrenaturais do que religiosos.

Como muitos antes e depois dele, este romance se utiliza do recurso da observação externa para analisar o comportamento alheio. No caso, o doutor Edmundo sobre a sociedade secreta. Mas como que em paralelo, e principalmente, por meio desta sociedade utópica, Emília expõe e critica as mazelas e iniquidades da realidade de sua época: o machismo e desvalorização da mulher, a pobreza e exploração social, o racismo, o sistema político excludente e autoritário, fazendo-a, além de abolicionista, uma defensora da república. Só faltou defender o voto feminino, inexistente no período em que viveu.

Por meio de ações concretas de ajuda e intervenção em situações de injustiça: como a cura de doenças, a recuperação da reputação de mulheres desonradas pelos homens, a caridade e ajuda financeira aos pobres, o consolo de quem perdeu entes queridos, a libertação de escravizados do julgo de um coronel cruel, a Rainha e suas paladinas tentam reparar, mesmo que pelas bordas e de maneira incógnita, as injustiças e tristezas, principalmente dos mais desvalidos e das mulheres.

Em uma época em que a mulher era relegada ao mundo doméstico (da casa para dentro), a intenção da autora é expor estas limitações e opressões, além de criticar também os valores de um mundo social cheio de injustiças. Mas pode-se identificar um limite, pois não vai ao ponto de emancipar a condição feminina ou apresentar alternativas mais concretas para uma sociedade mais justa, pois as justiceiras, como dito, agem de forma oculta, por meio de disfarces e uso da hipnose, e não denunciam publicamente os perpetradores das mazelas. É como se as injustiças fossem confrontadas – e superadas – no plano privado, ora o mesmo em que a mulher, de forma geral, vive e tem reproduzida sua condição inferior frente aos homens e seus valores dominantes.




Uma situação esperada por toda a leitura é a descoberta do disfarce de Edmundo e, desta forma, a chance de uma altercação mais direta entre um homem ilustrado e uma mulher revolucionária. Mas, conforme a história transita entre uma aventura reparadora e outra, o advogado, embora simpático à causa, não se esforça nem para isso e menos ainda para se revelar diante de uma mulher pelo qual inicialmente, julgava-se, apaixonado. Falta ao romance não propriamente este encontro em si, mas uma cobrança mais direta, digamos assim, do comportamento masculino tão questionado.

Chama a atenção também o tema da morte. Pessoas (principalmente mulheres) morrem de dores de amor e ainda jovens. Há um sentimento de melancolia e certa morbidez a cercar praticamente todos os personagens, como se a morte fosse alguém muito próxima, em uma vida tão cheia de limitações. Talvez pelo fato de a própria expectativa de vida na época ser curta, entre 30 e 40 anos, mesmo para as pessoas que estavam na elite da sociedade. A morte era mais presente e próxima para quem vivia naquela época, talvez numa maneira que nos soe estranha nos dias de hoje.

A própria Emília não viveu até uma idade considerada avançada nos dias de hoje. Se foi aos 53 anos, acima da média da época, contudo. Além deste romance de FC&F – que na verdade foi seu último trabalho publicado – ela escreveu outro, O Renegado (1892), e a coletânea de poesias Canções do Lar (1891). Nascida na elite cearense – de pai militar –, ela atuou como professora em Fortaleza, colaborou com jornais literários e foi membro da Sociedade das Cearenses Libertadoras, o que ajuda a explicar suas ideias democráticas e feministas expostas em A Rainha do Ignoto.

Como disse antes, esta edição foi publicada por uma coleção de literatura luso-brasileira com autores mainstream, sendo Emília Freitas a maior novidade. Mas esta singularidade tem sido apontada também por alguns especialistas que estudam literatura brasileira, e mesmos aqueles mais próximos da FC&F. No caso, de que este romance seria o ponto de partida da literatura especulativa brasileira. E especialmente saudado, como seria altamente justificado, por ter sido escrito por uma mulher, alguém à margem das decisões importantes da sociedade daquela época. Mas o caso é que se pode questionar o pioneirismo desta obra, pois outras foram escritas no país durante da segunda metade do século XIX e, lamento dizer, por homens, o que, obviamente, não é surpresa alguma. De forma rápida, só para dar alguns exemplos: Statira e Zoroastes, de Lucas José D´Alvarenga (1826), Páginas da História do Brasil Escritas no Ano 2000, de Joaquim Felício dos Santos (1868) e O Rei Fantasma, de Coelho Netto (1895), entre algumas outras. Claro que a falta deste alegado pioneirismo não tira a importância e os méritos da obra de Emília Freitas. Que se utilizou de elementos do fantástico para escrever uma obra de qualidade literária admirável e com conteúdo social e crítico muito à frente de seu tempo.

Marcello Simão Branco