quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Uma Sombra Passou por Aqui/O Homem Ilustrado


Uma Sombra Passou por Aqui (The Illustrated Man), Ray Bradbury. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Editora Record, sem data, 222 páginas. Lançamento original em 1951.

Não é incomum nos dias de hoje ver uma pessoa com tatuagens por todo o corpo. Expressão de identidade, afirmação ou contestação de valores, culto a um herói ou ídolo, por estilo artístico ou estético, as motivações são variadas. Mas nem sempre foi assim e, em certos círculos sociais mais conservadores, ainda é visto com certa desconfiança ou preconceito.
Mas como deixa claro o protagonista de Uma Sombra Passou por Aqui, ele não tem tatuagens convencionais pelo corpo, mas sim ilustrações de pele. Mais elaboradas, artísticas e, sobretudo, fantásticas.
A primeira edição brasileira de The Illustrated Man saiu no país inspirada pela adaptação cinematográfica da obra, lançada em 1969, com direção de Jack Smight, e estrelada por Rod Steiger e Claire Bloom. Outras duas surgiram em 1976 pela Edibolso, uma com o mesmo título de Uma Sombra Passou por Aqui e, curiosamente, outra chamada de Recordações do Futuro. Embora não sejam ruins, os títulos nacionais perdem em termos de informação e estranhamento em relação ao original. Coisa que não ocorreu em Portugal, nas três vezes em que foi publicado por lá. Pois tanto as edições número 18 da Coleção Argonauta (1955), sua nova coleção Gigante (1999), como o da Publicações Europa-América (2004) receberam o título de O Homem Ilustrado.
O livro reúne a primeira seleta de histórias curtas do autor, no ano de 1951, e apresenta 18 contos independentes – já previamente publicados na década anterior em revistas populares –, mas interligados de maneira engenhosa pela figura do homem ilustrado, já que cada uma das histórias retrata uma das ilustrações, que ganham vida quando vistas por outra pessoa.
Mas como o homem ilustrado ficou assim? Já no Prólogo ele mesmo explica a um viajante que o encontra casualmente, que foi uma mulher que fez os desenhos em seu corpo. Uma mulher madura, linda e de personalidade hipnótica, nos seus dizeres uma feiticeira que teria vindo do futuro. Que o seduziu, ilustrou-o todo e, subitamente, desapareceu, o deixando com uma espécie de dádiva visual e maldição. Isso porque ele passou a ser visto com um misto de curiosa admiração e mau-agouro, pois através da contemplação das imagens uma pessoa pode vislumbrar, além de histórias incríveis, o seu próprio futuro e até mesmo a sua morte. Virou uma aberração que vaga de lugar em lugar trabalhando em circos e espetáculos teatrais, mas por pouco tempo, pois logo é dispensado após o fascínio ser substituído pela incompreensão e medo.
Assim, cada um dos contos representa uma das ilustrações. De certa forma elas representariam uma espécie de segredo oculto, janelas para outras experiências não formalizadas pela superficialidade dos nossos sentidos. Outros mundos ou universos, só acessíveis para os suficientemente curiosos e abertos a novas experiências. No caso quem as vive é o viajante. É curioso que esta obra se insinua como de fantasia ou mesmo horror, mas se desenvolve como de ficção científica. Isso porque o tema comum na maior parte das histórias é o contraste entre os valores humanos e o desenvolvimento de novas tecnologias e modos de vida, suas transformações sociais e psicológicas. Quase todas com um desfecho triste e pessimista. Afinal, não foi Ray Bradbury quem disse que uma das principais funções da ficção científica não é antecipar o futuro mas, se possível, evitar seus caminhos possíveis?
Pais e filhos que não conseguem se comunicar (“A Estepe Africana”, “Zero Hora”), astronautas que sofrem um acidente trágico no espaço (“Caleidoscópio” – precursor do filme Gravidade [Gravity, 2013]?), sobre o fim do mundo (“A Estrada” e “A Última Noite”), da ausência sentida de um astronauta (“O Foguetista”), um casal que viaja no tempo para fugir de uma guerra (“A Raposa e a Floresta”), do envolvimento emocional com andróides (“Marionetes S.A.”), o sentimento de abandono de colonos espaciais (“A Grande Chuva” – em Vênus –, e “O Visitante” – em Marte).
Outro aspecto interessante da coletânea é sua apresentação, pela primeira vez, de temas que seriam recorrentes e mais elaborados em obras posteriores. A começar pelo homem ilustrado, que reaparece numa nova versão no romance de fantasia sombria Algo Sinistro Vem por Aí (Something Wicked this way Comes, 1962), no qual as ilustrações móveis, do agora chamado Senhor Dark, representam as almas das vítimas pecaminosas de um carnaval misterioso. Bradbury não deixa claro no romance se é o mesmo personagem de um livro para o outro, mas não é insensato imaginar que sim.
Alguns contos exploram também a presença humana em Marte, como “O Visitante”, “O Outro Pé”, “A Betoneira”, “Os Ígneos Balões” – este último republicado no romance fix-up As Crônicas Marcianas (The Martian Chronicles, 1950). O tema da exploração espacial em vários matizes: “A Grande Chuva” – relato impressionante de uma tempestade eterna em Vênus, que enlouquece os astronautas – “O Homem” – sobre a chegada dos terráqueos a um planeta habitado, mas que tratam os visitantes com total indiferença, pois estavam, naquele momento, na presença D´ele –, “Uma Noite e uma Manhã Comuns”, “A Cidade”, além dos já citados “Caleidoscópio” e “O Foguetista”.

Especialmente contundente é o conto “Os Expatriados”, que mostra um futuro em que livros de horror foram banidos da Terra. Os autores destes livros vivem uma espécie de exílio pós-morte em Marte. Pois embora mortos, eles ainda se importam com o destino de suas obras, especialmente quando um foguete chega à Marte com os últimos exemplares restantes, para serem destruídos. Em desespero, Poe, Bierce, Machen, Hodgson, Lovecraft e outros tentam se unir para evitar o que seria o definitivo desaparecimento de todos. A morte suprema do esquecimento. Pode-se dizer que é um precursor eficiente do clássico Fahrenheit 451 (1953).
Mesmo escritas nos anos 1940 as histórias têm um bom desenvolvimento de enredos e personagens, muito à parte do que se fazia na maioria das obras da ficção científica norte-americana da Golden Age. Esta abordagem crítica, psicologicamente madura e de elevado padrão literário, permitiram a Bradbury a, rapidamente, sair do ambiente do fandom e receber um reconhecimento mais geral, embora ele nunca tenha deixado de ser visto como um dos mais celebrados autores de FC e fantasia. Tanto é que The Illustrated Man foi finalista de um prêmio do gênero, o International Fantasy Award, em 1952, precursor do Prêmio Hugo.
Em comparação com o filme de 1969 é interessante observar que a presença do homem ilustrado é intercalada em cada uma das histórias, permitindo um sentido de equilíbrio maior, situação ausente do livro, em que as histórias, apresentadas na sequência sem esta intermediação, por vezes, parecem independentes demais. Ou seja, há certa perda de equilíbrio da proposta temática, mesmo com o desfecho da convivência do homem ilustrado e do viajante no epílogo da obra. Por uma questão de tempo e custos apenas três contos foram adaptados para o cinema: “A Estepe Africana”, “A Grande Chuva” e “A Última Noite”. Talvez fosse possível produzir uma minissérie onde mais contos fossem adaptados.
Embora as histórias apresentem assuntos diferentes, mas por vezes, como vimos, alocados em alguns temas comuns –, o clima geral é de melancolia e com desfechos fatalistas e infelizes. Uma exceção é o conto final “O Foguete”. Numa época em que os passeios espaciais são rotineiros para os ricos, um pai sem tantos recursos elabora uma fantasia tocante para satisfazer o desejo da mulher e dos filhos. Uma perola.
O Homem Ilustrado é uma obra de imaginação desconcertante, certamente inesquecível. Merecia ser relançada aqui no Brasil, pois a última vez que apareceu nas livrarias foi há pouco mais de quarenta anos.
– Marcello Simão Branco

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