terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Prêmio Odisseia 2024

Criado em 2019, o Prêmio Odisseia de Literatura Fantástica homenageia os favoritos de um júri composto por escritores convidados, dentre uma relação de obras publicadas no ano anterior especificamente inscritas para o certame. 
A edição 2024 anunciou seus vencedores durante a décima edição do congresso Odisseia de Literatura Fantástica, que aconteceu nos dias 30 de novembro e 1 de dezembro, no Espaço Força e Luz, em Porto Alegre. 
Os jurados do Prêmio em 2024 foram Guilherme Smee, Nathália Xavier Thomaz, Simone Saueressig, Camila B. Kaihatsu, Cesar Silva, Lucas Viapiana, Enéias Tavares, Roberto de Sousa Causo, Carolina Mancini, Adrianna Alberti e Duda Falcão.
Os vencedores são: 
Projeto gráfico: A noite do cordeiro, Daniel Gruber, O Grifo.
Quadrinho fantástico: As confissões da Bahia em quadrinhos; Alexey Dodsworth e Cristina Lasaitis, dos autores.
Narrativa longa juvenil: Anomalia, vol. 1, Marcelo Cassaro e Marlon Teske, Jambô.
Narrativa curta horror: Corpo de barro, João Mendes, Escambau.
Narrativa curta fantasia: A Feira do Troca-Troca onde um filhote de onça vale um rádio de pilha, Auryo Jotha, Motim.
Narrativa curta  ficção científica: Esperando o dono, André Cáceres, Caos & Letras. 
Narrativa longa  horror: Os que sobem à noite, Thunder Dellú, Avec.
Narrativa longa  fantasia:  Jornadas extraordinárias a vidas distantes, Camila Fernandes e David Hoffmann, Sisko .
Narrativa longa ficção científica: Um milhão de mim, Cirilo S. Lemos, Draco.
Artigo fantástico: "O estranhamento na ficção do antropoceno", George Amaral, Teorias e reflexões sobre o Estranhamento na Ficção, Bandeirola.
Conto inédito: "Poeira oceânica", Patrícia H. Aafantis.
Todos os contos participantes desta última categoria podem ser lidos no segundo número da Revista Odisseia de Literatura Fantástica, publicação exclusiva que foi distribuída aos presentes durante o evento.
A lista completa dos indicados pode ser lida aqui. Parabéns aos vencedores!

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Viagem à Aurora do Mundo

 


Viagem à Aurora do Mundo, Érico Veríssimo. Capa: Danúbio Gonçalves. Ilustrações internas: autoria não divulgada. 325 páginas. 16a. edição. Rio de Janeiro: Globo, 1996. Lançamento original em 1939.

 

Este é um romance curioso em vários aspectos. Em termos temáticos podemos vinculá-lo à ficção científica, mas também à ficção infanto-juvenil, além de se prestar, talvez principalmente, à categoria de um livro didático. Mas é também uma obra diferente do conjunto da obra de Érico Veríssimo (1905-1975), um dos principais autores da literatura brasileira do século XX, muito identificado com uma ficção realista e regionalista.

Como se percebe, é um livro que pode ser analisado em vários ângulos, mas o que mais no interessa aqui é sua proximidade com a FC. Escrito em 1939, o gênero ainda não havia se estabelecido no Brasil como um corpo auto-identificado, ou seja, a FC era praticada, mas os autores, em sua maioria, ao menos, não nomeavam seus escritos como pertencentes a este gênero de ficção. Dentro deste contexto, não era totalmente incomum que autores do mainstream praticassem uma ficção especulativa e/ou fantástica, como o caso, por exemplo de Guimarães Rosa (1908-1967), que nos anos 1930 publicou alguns contos nessa seara, depois reunidos no livro Primeiras Histórias (1962).

Mas Veríssimo quase se desculpa por escrever Viagem à Aurora do Mundo, tomada como uma ficção “menos séria”, um “descanso” ao seu trabalho de ficcionista mais preocupado com os problemas da realidade brasileira. No Prefácio, ele afirma que em algum momento queria voltar a se sentir como criança, e esta obra permitiu que revivesse sensações e lembranças do primeiro período de sua vida.

Seja como for, trabalhou com a maior seriedade. Isso porque é um trabalho digno de elogios, já que mantém as qualidades de sua literatura: uma prosa simples, fluente e prazerosa, com personagens interessantes e complexos, e sem deixar de incluir, aqui e ali, observações críticas sobre a sociedade brasileira da época, as limitações e contradições da condição humana e a situação preocupante do cenário internacional, que estava à beira da Segunda Guerra Mundial. Mas o livro meio que se protege destes problemas e investe, de fato, numa verve de criatividade e imaginação muito inspirada, ainda que, não distante do conhecimento científico da época.

Depois de ser malhado pela crítica pelo livro “As Portas do Tempo”, uma história, justamente, de ficção científica com um viajante do tempo, o escritor Dagoberto Prata parte para uma viagem a uma pequena cidade do interior e após passar alguns dias num hotel, descobre a existência, nos arredores, de um casarão antigo, com o sugestivo nome de A Vila do Destino. Curioso, ele sai para saber o que seria este lugar, e acaba por conhecer não só a casa, como seus moradores. E ela reúne um conjunto de excêntricos, a maioria pertencentes a uma mesma família. Um físico, um naturalista, um filósofo, um músico, um empresário e uma religiosa, além de uma garota sobrinha deles, a bela Magnólia, por quem, é claro, Dagoberto se apaixona.

Depois que os moradores da casa ficam sabendo que Dagoberto é um “romancista”, como lhe chamam, ele é convidado a entrar para a trupe, com o objetivo de divulgar o invento que está sendo construído pelo professor Fabricius, o físico. De certa forma, a viagem no tempo volta a fazer parte da vida do escritor, já que o invento é, simplesmente, uma máquina de visualizar o passado. Por meio dela é possível observar o que se passou desde o surgimento da vida na Terra. Aqui, lembro do porviroscópio, da máquina de enxergar o futuro, criada por Monteiro Lobato (1882-1948), em seu polêmico romance de FC O Presidente Negro (1926). Ou seja, a máquina de Veríssimo – que, infelizmente não é nomeada – tem o mesmo princípio, mas voltada ao passado. E chama a atenção que, em ambos os casos, a viagem no tempo é indireta e passiva. Ao contrário, por sinal, do romance de Dagoberto, muito criticado por, justamente, apresentar um viajante do tempo.

Assim, quando a máquina fica pronta, todas as noites eles se reúnem para a exibição da história natural do planeta, com a devida narração e análise do Prof. Calamar, o naturalista do grupo. Desta forma, a FC serve como um elemento indireto para o que realmente se presta a obra, uma descrição vívida e criativa sobre as eras e períodos da paleontologia, dando destaque, principalmente, às figuras icônicas dos dinossauros.

 Na verdade, o que ocorre é uma história dentro da história, pois a partir do momento que a máquina fica pronta, a maior parte do livro acontece nas eras passadas, por meio das imagens e dos comentários. Pouco acontece fora das exibições, a não ser a dificuldade de Dagoberto em conseguir a mão de Magnólia, também pretendida por Jó, o empresário que financiou o invento, e a presença misteriosa de um fantasma, que surge, aqui e ali, nos espaços ermos do casarão às altas horas da noite.




Em termos de FC propriamente dita há pouco a acrescentar, pois é ela apenas um meio para a descrição da história natural da Terra. Mas o livro é interessante por este aspecto, principalmente pela apresentação detalhada dos animais. Veríssimo deve ter feito uma grande pesquisa, pois ele descreve com acuidade a evolução da fauna e da flora do planeta, e com muita leveza e sensibilidade. O livro é saboroso também por ilustrar a maioria dos animais retratados, e fiquei curioso em saber quem as fez, pois são muito realistas, conferindo ainda mais verossimilhança aos relatos científicos.

De forma surpreendente, este livro me trouxe várias lembranças de minha infância, já que o meu primeiro interesse intelectual foi a vida dos animais, dinossauros obviamente incluídos. Assim, por um certo tempo, visitar o zoológico de São Paulo foi um passeio da família, assim como ir ao cinema assistir documentários sobre o mundo animal. De tão interessado ganhei num dia de Natal, o Dicionário dos Animais do Brasil, volume 1 (1968), de Rodolpho von Ihering (1883-1939), um dos livros que eu mais li e reli durante minha infância e parte da adolescência. E que guardo com carinho. Assim, fico mesmo a pensar porque não enveredei por esse caminho em minha vida profissional, já que, até hoje, me interesso pelos animais e a natureza em geral.

Viagem à Aurora do Mundo é, em suma, um delicioso livro didático que usa do recurso de uma máquina para contar a história da evolução da vida em nosso planeta. Embora obviamente desatualizado, creio que poderia ser utilizado até hoje em aulas de biologia, comparando o conhecimento da época com o de hoje. Além do aspecto lúdico, ganhariam os alunos um sentido de compreensão de como se desenvolveu o processo de conhecimento científico nessa área e de forma geral.

Quando era adolescente, na escola eu tive a oportunidade de ler dois livros de Veríssimo. O drama romântico Olhai os Lírios do Campo (1938) e As Aventuras de Tibicuera (1937), outro romance que faz uso indireto de um recurso fantástico, a imortalidade do indígena. Dois livros muito bons e que jamais esqueci, mas fico pensando o efeito que poderia ter ocorrido comigo se tivesse lido Viagem à Aurora do Mundo nessa época, ao abordar de forma tão bonita um dos assuntos que mais me apaixonaram na infância.

Marcello Simão Branco