Viagem
à Aurora do Mundo, Érico Veríssimo. Capa: Danúbio
Gonçalves. Ilustrações internas: autoria não divulgada. 325 páginas. 16a.
edição. Rio de Janeiro: Globo, 1996. Lançamento original em 1939.
Este é um romance curioso em vários
aspectos. Em termos temáticos podemos vinculá-lo à ficção científica, mas
também à ficção infanto-juvenil, além de se prestar, talvez principalmente, à
categoria de um livro didático. Mas é também uma obra diferente do conjunto da
obra de Érico Veríssimo (1905-1975), um dos principais autores da literatura
brasileira do século XX, muito identificado com uma ficção realista e
regionalista.
Como se percebe, é um livro que pode ser
analisado em vários ângulos, mas o que mais no interessa aqui é sua proximidade
com a FC. Escrito em 1939, o gênero ainda não havia se estabelecido no Brasil como
um corpo auto-identificado, ou seja, a FC era praticada, mas os autores, em sua
maioria, ao menos, não nomeavam seus escritos como pertencentes a este gênero
de ficção. Dentro deste contexto, não era totalmente incomum que autores do mainstream praticassem uma ficção
especulativa e/ou fantástica, como o caso, por exemplo de Guimarães Rosa
(1908-1967), que nos anos 1930 publicou alguns contos nessa seara, depois
reunidos no livro Primeiras Histórias
(1962).
Mas Veríssimo quase se desculpa por
escrever Viagem à Aurora do Mundo,
tomada como uma ficção “menos séria”, um “descanso” ao seu trabalho de
ficcionista mais preocupado com os problemas da realidade brasileira. No
Prefácio, ele afirma que em algum momento queria voltar a se sentir como
criança, e esta obra permitiu que revivesse sensações e lembranças do primeiro
período de sua vida.
Seja como for, trabalhou com a maior
seriedade. Isso porque é um trabalho digno de elogios, já que mantém as
qualidades de sua literatura: uma prosa simples, fluente e prazerosa, com
personagens interessantes e complexos, e sem deixar de incluir, aqui e ali,
observações críticas sobre a sociedade brasileira da época, as limitações e
contradições da condição humana e a situação preocupante do cenário
internacional, que estava à beira da Segunda Guerra Mundial. Mas o livro meio
que se protege destes problemas e investe, de fato, numa verve de criatividade
e imaginação muito inspirada, ainda que, não distante do conhecimento
científico da época.
Depois de ser malhado pela crítica pelo
livro “As Portas do Tempo”, uma história, justamente, de ficção científica com
um viajante do tempo, o escritor Dagoberto Prata parte para uma viagem a uma
pequena cidade do interior e após passar alguns dias num hotel, descobre a
existência, nos arredores, de um casarão antigo, com o sugestivo nome de A Vila
do Destino. Curioso, ele sai para saber o que seria este lugar, e acaba por
conhecer não só a casa, como seus moradores. E ela reúne um conjunto de excêntricos,
a maioria pertencentes a uma mesma família. Um físico, um naturalista, um
filósofo, um músico, um empresário e uma religiosa, além de uma garota sobrinha
deles, a bela Magnólia, por quem, é claro, Dagoberto se apaixona.
Depois que os moradores da casa ficam
sabendo que Dagoberto é um “romancista”, como lhe chamam, ele é convidado a
entrar para a trupe, com o objetivo de divulgar o invento que está sendo
construído pelo professor Fabricius, o físico. De certa forma, a viagem no
tempo volta a fazer parte da vida do escritor, já que o invento é,
simplesmente, uma máquina de visualizar o passado. Por meio dela é possível
observar o que se passou desde o surgimento da vida na Terra. Aqui, lembro do
porviroscópio, da máquina de enxergar o futuro, criada por Monteiro Lobato
(1882-1948), em seu polêmico romance de FC O
Presidente Negro (1926). Ou seja, a máquina de Veríssimo – que,
infelizmente não é nomeada – tem o mesmo princípio, mas voltada ao passado. E
chama a atenção que, em ambos os casos, a viagem no tempo é indireta e passiva.
Ao contrário, por sinal, do romance de Dagoberto, muito criticado por,
justamente, apresentar um viajante do tempo.
Assim, quando a máquina fica pronta, todas
as noites eles se reúnem para a exibição da história natural do planeta, com a
devida narração e análise do Prof. Calamar, o naturalista do grupo. Desta
forma, a FC serve como um elemento indireto para o que realmente se presta a
obra, uma descrição vívida e criativa sobre as eras e períodos da
paleontologia, dando destaque, principalmente, às figuras icônicas dos
dinossauros.
Na
verdade, o que ocorre é uma história dentro da história, pois a partir do
momento que a máquina fica pronta, a maior parte do livro acontece nas eras
passadas, por meio das imagens e dos comentários. Pouco acontece fora das
exibições, a não ser a dificuldade de Dagoberto em conseguir a mão de Magnólia,
também pretendida por Jó, o empresário que financiou o invento, e a presença
misteriosa de um fantasma, que surge, aqui e ali, nos espaços ermos do casarão às
altas horas da noite.
Em termos de FC propriamente dita há pouco
a acrescentar, pois é ela apenas um meio para a descrição da história natural
da Terra. Mas o livro é interessante por este aspecto, principalmente pela apresentação
detalhada dos animais. Veríssimo deve ter feito uma grande pesquisa, pois ele
descreve com acuidade a evolução da fauna e da flora do planeta, e com muita
leveza e sensibilidade. O livro é saboroso também por ilustrar a maioria dos
animais retratados, e fiquei curioso em saber quem as fez, pois são muito
realistas, conferindo ainda mais verossimilhança aos relatos científicos.
De forma surpreendente, este livro me
trouxe várias lembranças de minha infância, já que o meu primeiro interesse
intelectual foi a vida dos animais, dinossauros obviamente incluídos. Assim,
por um certo tempo, visitar o zoológico de São Paulo foi um passeio da família,
assim como ir ao cinema assistir documentários sobre o mundo animal. De tão
interessado ganhei num dia de Natal, o Dicionário
dos Animais do Brasil, volume 1 (1968), de Rodolpho von Ihering (1883-1939),
um dos livros que eu mais li e reli durante minha infância e parte da
adolescência. E que guardo com carinho. Assim, fico mesmo a pensar porque não
enveredei por esse caminho em minha vida profissional, já que, até hoje, me
interesso pelos animais e a natureza em geral.
Viagem
à Aurora do Mundo é, em suma, um delicioso livro didático
que usa do recurso de uma máquina para contar a história da evolução da vida em
nosso planeta. Embora obviamente desatualizado, creio que poderia ser utilizado
até hoje em aulas de biologia, comparando o conhecimento da época com o de
hoje. Além do aspecto lúdico, ganhariam os alunos um sentido de compreensão de
como se desenvolveu o processo de conhecimento científico nessa área e de forma
geral.
Quando era adolescente, na escola eu tive
a oportunidade de ler dois livros de Veríssimo. O drama romântico Olhai os Lírios do Campo (1938) e As Aventuras de Tibicuera (1937), outro
romance que faz uso indireto de um recurso fantástico, a imortalidade do
indígena. Dois livros muito bons e que jamais esqueci, mas fico pensando o
efeito que poderia ter ocorrido comigo se tivesse lido Viagem à Aurora do Mundo
nessa época, ao abordar de forma tão bonita um dos assuntos que mais me
apaixonaram na infância.
—Marcello Simão Branco