Não
Verás País Nenhum, Ignácio de Loyola Brandão. Global Editora, 11a.
edição, São Paulo, 1985, 357 páginas. Lançado originalmente em 1981.
Durante
os anos da ditadura militar (1964-1985) a literatura brasileira produziu
algumas obras muito boas sobre a condição política e social do país. E, de
forma surpreendente para alguns, a partir de um ponto de vista não
convencional, pela metáfora, pelo fantástico e sobretudo pela ficção
científica, também chamada para este caso específico de ficção distopica.
Talvez
o livro mais importante e influente tenha sido Não Verás País Nenhum, de
Ignácio de Loyola Brandão. Quando o escreveu, o autor já era reconhecido, tendo
publicado obras importantes, inclusive, sobre aspectos da repressão, como o
controverso Zero (1974), ainda hoje o seu livro de maior impacto. Também
editou com sucesso a primeira versão da revista Planeta, na primeira
metade dos anos 1970, quando publicava contos de ficção científica, inclusive
de autores brasileiros. Vê-se, portanto, que o autor tem alguma comunicação com
o gênero. Sendo assim, Não Verás País Nenhum deve interessar
particularmente os leitores tradicionais do gênero.
Desconfio,
entretanto, que poucos fãs brasileiros de ficção científica já o tenham lido. É
realmente de se lamentar, pois se está diante de um verdadeiro livraço.[1]
Foi, inclusive, publicado nos Estados Unidos e países europeus com premiações e
críticas elogiosas,[2] o que
atesta também o seu caráter universalista, mesmo abordando de forma profunda
não só a ditadura, mas a própria ideia do que é ser brasileiro, especialmente a
partir da segunda metade do século passado, isto é, urbanizado e em contato com
mudanças tecnológicas.
Estamos
no início do século XXI em São Paulo. A ditadura militar não terminou e
perpetuou seus métodos de governo autoritário e sua repressão política e
comportamental à sociedade. Temos como protagonista Souza, um ex-professor de
História, que aposentado à força pelo regime, trabalha como um burocrata
metódico e entediado. Além da ditadura política em si, o país passa por um
desequilíbrio ecológico grave, com racionamento de água, calor intenso,
alimentos artificiais e manufaturados, ausência quase total de vida animal e
vegetal, nascimento de crianças deformadas e mutantes. Pois a floresta
amazônica e as demais foram destruídas, transformadas em gigantescos desertos,
o que explica as altas temperaturas durante o ano inteiro.
Situações
próximas do surrealismo ilustram o contexto, como os banheiros públicos que
reciclam a urina – com o requinte de selecionar as urinas mais saudáveis – para
transformá-la em água, usada para beber e outros fins pelas pessoas. Os bolsões
de calor, que provocam a queimadura até a morte, no início no Nordeste, mas no
fim também em São Paulo, levando à construção de uma obra faraônica e inútil,
uma quilométrica Grande Marquise para abrigar do calor os miseráveis e os
sem-teto.
Desta
forma tanto quanto uma distopia política, Não Verás País Nenhum também é
uma distopia ecológica. Em que não apenas um Estado dispõe de forma autoritária
e truculenta sobre os recursos da natureza, como a própria sociedade, além de
não ter controle sobre as ações do governo, parece ter pouco apreço pelo
meio-ambiente em si – destrói um museu sobre a natureza e uma reserva ecológica
clandestina, por exemplo –, embora seja quem realmente sofra suas consequências
danosas, já que os agentes estatais se protegem por meio de cúpulas
climatizadas e refrigeradas.
Em
acréscimo a esta degradação ambiental, o Brasil perdeu parte de seu território,
principalmente o Nordeste, que se transforma numa Reserva Multinacional. Foi
cedido a outros países e grupos econômicos internacionais, provavelmente por
causa da dívida externa do país. Esta perda provoca um grande êxodo de
nordestinos para o Sudeste, que os reprime construindo grandes cercas em tornos
das áreas metropolitanas de suas principais metrópoles. Assim é que se
concentra nos arredores de São Paulo, uma quantidade imensa de acampamentos,
verdadeiro campo de refugiados dentro do próprio país. Sem poder voltar ao que
perdeu. E sem poder entrar no que nunca, de fato, pôde desfrutar.
Neste
contexto de repressão política e caos ambiental, o melhor tipo de emprego que
se pode conseguir é por meio da adesão ao regime, ou seja, sendo militar ou um
burocrata. Ou as duas coisas, os tais ‘militecnos’, que atuam em empresas
estatais e cargos de direção do Estado – aqui chamado de Esquema – certamente
uma alusão aos tecnocratas dos anos 1970 de nosso país. Para desgosto do antigo
contestador Souza, há um militecno em sua família, seu jovem sobrinho. Há
também os ‘civiltares’, espécie de segmento responsável pelo patrulhamento,
espionagem e repressão do regime. Tropas de elite de cunho civil-militar,
mantidas pelo Estado e por grupos privados que o apoiam, de caráter
paramilitar, o que lhe abre a oportunidade de agir frontalmente às margens de
lei já por si mesmas discricionárias.
Dentro
deste cenário geral, o romance é narrado em dois planos que se justapõem, o
macro e o micro. No micro, a história pessoal de Souza e de como é a sua vida
neste país governado há cerca de 40 anos pelos militares. No macro, a
contextualização social, política e ecológica desta realidade.
Impressiona
o nível de detalhes que o autor elabora para construir a sua ditadura que nunca
terminou. Nesta São Paulo, as pessoas vivem restritas aos seus bairros.
Precisam de bilhetes especiais para transitar pela cidade. Se os perdem
simplesmente não podem voltar para suas casas.
Através
da perspectiva de Souza, um intelectual sufocado pelo regime e que ainda
carrega culpas dentro de si mesmo, Loyola extrapola a ditadura militar para o
futuro próximo, sempre olhando para o passado. Este é um recurso válido, pois
permite uma visão retrospectiva de como um futuro veria a ditadura dos anos 1970
e 1980. Em termos de ficção científica é manjado, com um observador exterior
(geralmente um alienígena ou viajante do tempo) usado para comentar as mazelas
de nossa civilização. Já no caso do livro, o observador é o próprio
protagonista (em primeira pessoa), pois não há propriamente um encadeamento de sequencias
no desenrolar da narrativa. Tanto que o romance recebe o subtítulo de “memorial
descritivo”, embora por meio deste recurso o contexto geral seja aprofundado
com o drama crescente vivido pelo protagonista. Ao invés do personagem se
movimentar dentro de um mundo – e desta forma procurar modificá-lo –, é como se
este mundo impulsionasse e transformasse o personagem.
Ademais,
a decorrência mais comum desta linha de abordagem narrativa são as observações
sarcásticas que ridicularizam o regime de uma forma geral. Loyola é particularmente feliz com colocações
agudas que provocam no leitor aquele sorriso torto no canto da boca, tanto de
lembrança do fato, como de sua interpretação absolutamente demolidora do nonsense
daquilo tudo. Então há os que se ‘locupletaram’(fala aqui de boa parte da
classe média), os ministros ‘embriagados’, os corruptos e os apenas
incompetentes. Chega a nomear algumas fases pelas quais passou o regime, de
clara ressonância para quem o viveu, como por exemplo, os “Abertos 80”, uma
referência ao processo de abertura que o regime viveu a partir de meados dos
anos 1970 e que chegava ao auge no começo dos 1980, e à “Era Casuística”, esta
dos anos 1970, quando os militares mudavam as regras eleitorais para favorecer
os políticos do partido que os apoiava.[3]
Em
meio a este contexto, surge um furo numa das mãos de Souza, pretexto para a
virada definitiva em seu comportamento e para os rumos da própria história. Por
medo do que lhe possa acontecer – ser preso e confinado ao isolamento, ou
perder o emprego –, ele resiste em ir ao médico, apesar dos apelos de sua
passiva e conservadora Adelaide, sua esposa. Passa também a enfrentar seu
sobrinho milico e relaxa com sua higiene e alimentação, além de chegar atrasado
para o trabalho.[4]
Souza
vai gradativamente deixando sua resignação de lado, bem como sua segurança
econômica, pois é demitido do emprego, abandonado por sua esposa e tem seu
apartamento invadido por um grupo de estranhos, aliados de seu sobrinho, como
parte de uma atividade de contrabando ilegal de alimentos. Muito deprimido com
tantas mudanças pessoais, Souza é impotente para expulsar os invasores. Mas
reage quando estes começam a matar aqueles que os incomodam, os pedintes e
mutantes que aos poucos rompem os acampamentos e entram em São Paulo,
aumentando ainda mais o caos social e o grau de opressão.
Souza
teme ser morto e acaba sendo abandonado em um lixão na periferia da cidade.
Vira um ninguém, como tantos pedintes, desempregados e refugiados que ele antes
tinha pena, quando ainda possuía uma ocupação, residência e esposa. Neste
processo de decadência pelo qual passa o protagonista, Loyola nos fala da degeneração
social e moral da própria sociedade submetida ao um regime perverso e sem
freios.
Outro
aspecto interessante é que Loyola contrapõe o seu Brasil distópico como uma
espécie de antítese da tradição da ficção científica anglo-americana. Chega a
citar autores importantes do gênero e as supercivilizações tecnológicas que
criaram e como teríamos engendrado por aqui o inverso: Uma urbe
superpopulosa, poluída, caótica e sob uma ditadura. Como se realmente
tivéssemos ficado sem ver país nenhum.
Mary
Elisabeth Ginway, em Ficção Científica
Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro (Devir, 2005)
observa outro aspecto, de que Loyola aproveita para criticar a ficção
científica anglo-americana, vista por ele como excessivamente otimista,
determinista ou mesmo ingênua sobre o impacto da tecnologia na sociedade e na
ação dos indivíduos. Faz sentido, mas talvez da perspectiva dela – como uma
americana – e não da perspectiva de quem faz a análise a partir de seu país,
como o meu caso. Ou, creio, como na intenção original do autor.
Qual?
A de um Brasil que a partir do autoritarismo falha definitivamente em ser o tal
país do futuro, que se imaginava pudesse ser algo semelhante a algumas
das utopias hedonistas e tecnicistas da ficção científica escrita no Norte.
Nesta linha de interpretação, àquilo que se assemelhava a uma ficção científica
para o Brasil teria de ser de má qualidade, no sentido de só podermos
produzir anti-utopias para o nosso país. Mas, ao menos no caso de Loyola, com
sofisticação.
Isso
porque o romance lembra a estrutura paranoica vista na maior das anti-utopias, 1984,
de George Orwell, embora pelo ponto de vista de sua ineficiência de gestão,
ainda que com repressão. E uma estrutura existencial à lá Kafka,
remontando a uma melancolia com o estado geral das coisas, ilustrada, claro,
por situações absurdas. Mais absurdas ainda porque reais. Como o sumiço final
do furo na mão de Souza, o último sujeito dos porquês em um mundo que se
esqueceu de questionar a si mesmo e se entregou a um niilismo quase suicida.
Vale
a pena citar ao menos uma passagem que mostra a sensibilidade crítica do autor
com relação à postura das pessoas com respeito aos efeitos de um regime
autocrata:
“Fomos nos habituando, de tal modo que passamos a
pactuar com a tragédia, aceitando-a como cotidiano. Me espanta essa capacidade
de acomodação da mentalidade, sua adaptação ao horror. Acredito que a gente
possua um componente de perversidade que nos leva a encarar como normal esse
pavor, a desejá-lo, às vezes, desde que não nos toque. Uma porcentagem de
perversidade que tem sido alimentada pelo Esquema, essa coisa tão abstrata, que
consegue se manter em meio à anarquia, ao caos estabelecido como ordem, à
anomalia mascarada em progresso.” (página 191).
No
fundo, Loyola descreve o fracasso do projeto de modernização do país e seus
efeitos no cotidiano e mentalidade das pessoas. Uma opção de desenvolvimento
importante não criada, mas ampliada de forma exagerada e distorcida pelos
militares, por eles ufanistamente nomeada de “Brasil Potência”, com super
usinas hidrelétricas e nucleares. E o autor escreveu justamente na época em que
as esperanças do país renasciam, os anos 1980, por causa da liberalização
política do regime e as perspectivas concretas que se avizinhava para o retorno
da democracia.
Se
o pessimismo da obra não coaduna com o momento específico que o país vivia,
talvez seja porque o autor não acreditasse de fato que o país voltasse à ordem
constitucional ou então de que mesmo nela o país já estaria inviável do ponto
de vista de sua modernização e equidade social. Desta forma, Não Verás País Nenhum
é o Brasil do futuro que nunca se realizou.[5]
Este
é o melhor romance brasileiro de ficção científica já escrito. Um exemplo
concreto das potencialidades de uma ficção de caráter especulativo que contesta
a realidade e reflete sobre os problemas do país e do mundo contemporâneo. E,
se possível, responda a alguma inquietação existencial do próprio autor.
– Marcello Simão Branco
[2] Recebeu,
por exemplo, o Prêmio Illa, como o melhor livro latino-americano publicado na
Itália em 1983, e resenhado no The New York Times Book Review.
[3] No artigo
“Ventos de Mudança: A Ficção Científica Brasileira e a Transição Democrática”,
argumento que Não Verás País Nenhum
foi um romance que inaugurou uma mudança temática dentre aqueles que discutiram
criticamente o regime militar. Pois quando escrito não se estava mais no
período mais sombrio da repressão – da ficção
distópica, mas sim no contexto do processo de liberalização do regime – uma
ficção da abertura. Desta forma
sinalizou, em termos literários, as novas perspectivas que se abriam para o
Brasil. Ver em Semina: Revista de
Ciências Sociais e Humanas, vol. 34, n. 2, 2013.
[4] Na
coletânea Cadeiras Proibidas (1977), o autor retoma o tema no conto
absurdista “O Homem do Furo na Mão”.
[5] No
lançamento do livro Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e
Nacionalidade no País do Futuro, de M. Elisabeth Ginway, em 27 de julho de
2005, Loyola afirmou, em um debate na livraria Fnac, em Pinheiros, São Paulo,
que este livro foi a conclusão de sua trilogia sobre a ditadura militar. Teria
começado com sua instauração com Zero (1974), analisado o codidiano das
pessoas sob sua vigência na coletânea Cadeiras Proibidas (1977) e
especulado o seu desfecho futuro com Não Véras País Nenhum (1981). Em
termos literários, provavelmente, a melhor contribuição a este perído histórico
do país.
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