sexta-feira, 2 de maio de 2025

Pulp Fiction Portuguesa

 



    Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa: Os Melhores Contos do Séc. XX, organização e introduções de Luís Filipe Silva. Colaboração de Luís Corte Real. 416 páginas. São Pedro do Estoril: Saída de Emergência, coleção Bang!, n. 155, 2011.

 

    A ficção científica (FC) e gêneros semelhantes (como a fantasia, o horror, o policial, o western etc) se tornaram populares graças ao seu desenvolvimento em torno das pulp magazines. Sim, na primeira metade do século XX, a massificação do gênero ocorreu através da publicação de contos, noveletas e novelas em centenas de revistas, produzidas com papel barato, preços muito baixos e farta distribuição por todos os cantos dos Estados Unidos, inclusive em supermercados, farmácias, terminais rodoviários, além dos pontos tradicionais, como livrarias e bancas de jornais. Tiveram, além disso, um público cativo e definido, voltado para adolescentes. Tal entusiasmo, incentivou a popularização de vários temas e conceitos. Na FC, por exemplo, a exploração do espaço, os extraterrestres, robôs e cenários de fim de mundo –, escritos por uma maioria de autores também jovens, muitos deles leitores das próprias revistas. Isso criou toda uma comunidade em torno do gênero, conhecida como fandom. Tais características, por outro lado, identificaram a FC e afins, como pobres em termos de prosa e estilo, forjando preconceitos, que em certa medida, sobrevivem até hoje.

    Todo este movimento cultural – de base literária – foi forte no país de economia mais pujante, de maior mercado produtor e consumidor – daí a FC em especial ser vista, mesmo hoje por pessoas mais desavisadas, como uma manifestação da cultura norte-americana –, mas extrapolou suas fronteiras, seja exportando suas revistas, seja, de forma mais importante, ajudando a desenvolver a pulp fiction em outros países, principalmente na Europa. Mas com cada país adquirindo suas próprias especificidades, de acordo com suas culturas e sociedades.

    Pois, nesse sentido, Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa imagina como poderia ter sido se tivesse havido um movimento semelhante no país. Isso porque, afora as características próprias do mercado editorial de Portugal, dificultou o desenvolvimento o fato do país ter passado por um período extenso de regime autoritário, 41 anos de 1933 a 1974, o que limitou as possibilidades de expressões artísticas e literárias mais livres.

    Em todo caso, não é que não tenha existido uma movimentação editorial de caráter pulp no país. Pois foram sim publicadas histórias pulps em revistas próprias por lá, por parte de alguns autores nacionais – como Diniz Machado e Roussado Pinto (este o nome verdadeiro de Ross Pynn, conhecido principalmente como antologista) –, boa parte deles com pseudônimos estrangeiros, e principalmente com material traduzido do exterior, principalmente dos Estados Unidos. Aliás, no Brasil ocorreu um processo semelhante, já a partir dos anos 1930, principalmente através de revistas pulps que publicaram em sua maioria contos de autores estrangeiros, mas também quase sempre com alguns brasileiros em cada edição. em especial entre as décadas de 1930 e 1970 – títulos como Mistérios, Meia-Noite, Galáxia 2000, entre outros. Mas talvez principalmente este fenômeno tenha ganhado uma feição particular em nosso país, com a publicação de livrinhos de bolso escritos por brasileiros com o nome de pseudônimos anglófonos. Tanto é que tivemos entre nós, R.F. Luchetti (1930-2024), que publicou centenas de obras como essas, sendo justamente considerado o Rei do Pulp Brasileiro.

    Desta forma, temos com esta antologia quase que um exercício de história literária alternativa. Num trabalho excepcional de pesquisa e criatividade, que em certos momentos de tão intensa, me deixou em dúvida sobre sua veracidade integral –, Luís Filipe Silva, apresenta, contextualiza e narra várias histórias com o melhor de uma possível ficção pulp lusitana.

    É uma antologia de ficção e não-ficção quase que em pé de igualdade, pois o esmero, a competência e a paixão são visíveis em cada página da obra. O livro contém uma introdução geral e mais treze histórias, quase todas noveletas, escritas por nomes que se mostram tão críveis que se chega a pensar se eles de fato teriam existido.

    O artigo de abertura é uma deliciosa análise crítica e biográfica sobre as origens e trajetória da pulp fiction de Portugal, com os principais temas, autores, editores e revistas. A seguir temos os relatos ficcionais propriamente ditos e quase tão interessantes quanto eles são os textos de apresentação de cada um dos autores, suas vidas e obras. Inclusive com as fotos deles e delas. Cheguei até a pesquisar no google estes nomes, mas sem sucesso.  Afinal, quem seriam de fato essas pessoas? Talvez um vislumbre do universo paralelo em que viveram?

    Cada história também foi impressa no livro de forma fac-similada, isto é, com a reprodução da versão original como publicada em uma dada revista. Mas há algumas delas inéditas, sendo, então, reproduzidas, na forma original em que foram escritas. Particularmente curioso é o caso de “A Noite do Sexo Fraco”, de Ludovico Bombarda – um pseudônimo –, com o texto apresentado com trechos censurados pela censura da ditadura de Salazar, principalmente concernentes ao regime político e ao erotismo. Tudo isso acrescenta ainda mais realismo à proposta.

    Todas as histórias são assinadas por nomes de destaque do movimento pulp lusitano como, por exemplo, Ruy de Fialho (autor de “O Segundo Sol”), A.M.P. Rodriguez (pseudônimo de um autor desconhecido, com “Pena de Papagaio”), Marcelo Augusto Galvão (este um brasileiro, que assina como Maxwell Gun, “Horror em Sangre de Cristo”), Tiago Rosa (com “O Inconsciente”), a estrela Ana Sofia Casaca (com “Noites Brancas), ela que também foi esposa de António Assunção, o principal editor do movimento, quase que um Campbell português.

    Praticamente todos os principais gêneros da pulp fiction estão representados nesta antologia: aventuras de guerra (“O Segundo Sol”), de horror (“A Expedição dos Mortos”, “O Inconsciente”, “Noites Brancas”), de crime (“Valente”), fantasia épica (“A Noite do Sexo Fraco” e “O Amaldiçoado de Ish-Tar”), e uma peculiaridade temática característica da cultura portuguesa. Aventuras além-mar, com histórias saborosas como “A Ilha”, “O Sentinela e O Mistério da Aldeia dos Pescadores”, “Horror em Sangre de Cristo” e “Pirata por um Dia”,

    As histórias são de alto nível, quase que num contraponto à qualidade média baixa dos contos pulps tradicionais. Destaco em especial a neolovecraftiana “A Ilha” (de João Domingues), “Horror em Sangre de Cristo” (de Maxwell Gunn), “O Amaldiçoado de Ish-Tar” (de Artur de Carvalho”), “O Inconsciente” (de Tiago Rosa) e “Noites Brancas” (de Ana Sofia Casaca). Poderiam ser selecionadas para antologias do melhor que a ficção de gênero curta luso-brasileira já produziu. Sem favor algum.

    Mas, afinal, quem seriam os autores das histórias? Luís Filipe Silva revela numa entrevista ao jornal português Público que os nomes dos verdadeiros autores das histórias estão dispersos pelo livro, normalmente nas próprias biografias. Que as histórias teriam sido selecionadas a partir de um concurso literário. Mas até onde pesquisei não houve notícia de um concurso como esse. Cheguei até a pensar que o autor fosse o próprio organizador. Enfim, trata-se de uma grande brincadeira de adivinhação, mas que, no fim das contas, não é tão importante, mas sim a qualidade da obra.

    Senti falta apenas da FC, que é, como dito no começo, o gênero mais praticado na pulp fiction. Talvez os portugueses não a apreciassem tanto? É possível, mas no fim das contas, esta tarefa é delegada ao último texto da antologia, a novela “Mais do Mesmo”, de autoria de um certo Roger C. Bester, um norte-americano radicado em Portugal que assinava suas histórias como João Barreiros. Uma piada interna com um dos mais importantes autores da ficção científica portuguesa.

    Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa é um livro que recebi de presente do próprio Luís Filipe Silva, pouco depois de seu lançamento. Ficou anos parado na estante, mas recomendo que o leitor que o tiver em mãos não espere tanto tempo. O livro, por tudo que já comentei, é uma verdadeira declaração de amor ao pulp e aos gêneros nele praticados. Uma das obras mais criativas e inteligentes que já li há muito tempo, e que se coloca como uma obra-prima da criação literária da FC&F em língua portuguesa.

    Publicada pela pequena editora Saída de Emergência – como só poderia ser um projeto fora do comum como esse –, é um livro raro e quase desconhecido do fandom brasileiro – e merece ser descoberto. Tal como a história da História do que poderia ter sido.

Marcello Simão Branco