sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Boneshaker, Cherie Priest

Boneshaker (Boneshaker), Cherie Priest. Tradução não identificada. 404 páginas. Baependi: Underworld, 2012.

Boneshaker é um romance retrofuturista steampunk de autoria da escritora americana Cherie Priest, publicado em 2012 pela extinta Editora Underworld. Originalmente publicado em 2009, foi indicado aos prêmios Hugo e Nebula, e venceu o Prêmio Locus de Melhor Romance de Ficção Científica.
A personagem principal é Briar Wilkes, uma mulher de meia idade, neta de um falecido líder carismático da cidade de Seattle, e viúva de Leviticus Blue, gênio da mecânica que criou um veículo perfurador – o Boneshaker do título – que, por acidente, devastou a cidade e rompeu algum tipo de bolsão de gás natural mortal que torna algumas das pessoas tocadas por ele em zumbis. Desde então, parte de Seattle foi segregada com uma muralha altíssima, que contém tanto o miasma quanto os zumbis. 
Briar vive do lado externo da muralha, estigmatizada pela tragédia causado pelo marido, que morreu no acidente, e sofrendo todo tipo de bulling dos demais sobreviventes, que a corresponsabilizam por seus prejuízos. E não se entende bem com o filho adolescente, Zeke, que acha que o pai era um herói e que as pessoas que os maltratam estão erradas a seu respeito. Ele fica sabendo que há pessoas vivendo dentro da muralha e, depois de uma discussão especialmente acalorada com a mãe, decide entrar na área segregada para buscar provas da retidão do pai no antigo casarão de família, que parece guardar muitos segredos incomuns. Para isso, usa um túnel secreto através do qual contrabandistas transportam a "Seiva de Limão", beberragem alucinógena destilada do próprio miasma. Ele pretende retornar antes que sua mãe dê por sua falta, mas ocorre um terremoto, os túneis desabam e Zeke fica preso dentro da área proibida. Desesperada com o desaparecimento do filho, Briar se lança a uma perigosa missão para resgatar Zeke de dentro das muralhas e evitar que ele venha a descobrir o mais sinistro segredo da sua vida. 
Boneshaker tem um texto excelente. Bom de ler e muito saboroso. Os personagens são fortes e interessantes, como o vilão Dr. Minnericht, a lutadora Princesa Angeline, o Capitão Cly e toda a tripulação do dirigível Naamah Darling, o malandro Rudy, o guerreiro Jeremiah Swalhammer e sua armadura de mil e uma utilidades, a barwoman Lucy O'Gunning, e muitos outros. 
O romance segue a risca a regra sagrada do steampunk, fundada pelos escritores americanos Willian Gibson e Bruce Sterling em A máquina diferencial: em algum momento, tem que acontecer uma revolução popular. E ela vai acontecer, é claro, no clímax da história. Também há muitas máquinas a vapor, dirigíveis, máscaras de solda e tudo mais que caracteriza este subgênero, que conta com seguidores ardorosos no Brasil. 
Boneshaker é o primeiro de uma série de sete romances que formam o Universo Clockwork Century:  Boneshaker(2009), Clementine (2010), Dreadnough (2010), Ganymede (2011), The Inexplicables (2012), Fiddlehead (2013) e Jacaranda (2015); nenhum outro saiu aqui. 
O mais curioso é que a autora não seja mais popular, pois não foi à toa que ganhou o Locus. Há, contudo, um segundo romance de Priest em português: Ela está em todo lugar (I am Princess X), história de fantasia urbana que une prosa e quadrinhos, publicada aqui em 2015 pela Editora Gutenberg, mas que não tem qualquer relação como universo de Boneshaker.
Vale a pena buscar nos sebos por um dos raros exemplares desse romance, pois é uma leitura intensa, emocionante e agradável. Tomara que outra editora republique esse título, bem como os demais da série, pois Cherie Priest é uma escritora excelente que merece ser mais lida.
Cesar Silva

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

O Perfuraneve

 


    O Perfuraneve (Le Transperceneige), Jacques Lob e Benjamin Legrand (texto) e Jean-Marc Rochette (desenho). Posfácio: Jean-Pierre Dionnet. Tradução: Daniel Luhmann. Capa: Pedro Inoue. 280 páginas. São Paulo: Aleph, 2015. Lançamento original entre 1982 e 2000.

 

Percorrendo a branca imensidão de um eterno e congelante inverno de solidão, corre, de uma ponta à outra da Terra, um trem cujo movimento nunca se encerra... É o expresso perfuraneve, com seus mil e um vagões.

 

    É com esse verso de certa melancolia e resignação que tem início uma das obras de FC mais interessantes das últimas décadas. Embora seja originalmente uma graphic novel, meu primeiro contato com a obra foi por meio de sua adaptação ao cinema, Expresso do Amanhã (Snowpiercer; 2013), do diretor coreano Bong Joon-ho, o mesmo que dirigiu em 2019 o impactante Parasita (Gisaengchung), premiado com o Oscar de melhor filme e a Palma de Ouro em Cannes.

    O filme é uma FC de primeiro nível, dos melhores produzidos neste século, mas tinha vontade de ler a obra original, uma criação dos franceses Jacques Lob (1932-1990), Benjamin Legrand (1950) e Jean-Marc Rochette (1956).

    A proposta da obra é instigante e beira a originalidade – algo tão difícil –, ao mostrar um mundo num pós-apocalipse climático, sob um rigoroso inverno glacial de cerca de – 90º C, e percorrido por um trem gigantesco levando o que teria restado da humanidade, numa viagem em círculos, rumo a lugar algum.

    Sempre imaginei como tal projeto havia sido concebido e a HQ esclarece que, originalmente, o bólido não se destinava a uma missão de sobrevivência. Era um trem de turismo de luxo, que teve de ser adaptado para abrigar o máximo possível de pessoas devido à catástrofe glacial. Assim, ao trem original, foi acrescentado centenas de vagões e que quanto mais distantes do original, menos relação guardava com o projeto para o qual havia sido concebido. Com isso, do meio para o fim do comboio, as condições de vida só fizeram piorar. Uma situação concreta de abandono à própria sorte, com menos aquecimento, pouca comida e água, alojamentos improvisados e precários, sujeira e muita, mas muita gente amontoada, superlotando a maioria dos vagões. E tudo isso rigidamente controlado por uma força militar para que as pessoas não ultrapassem seus vagões, ameaçando a vida dos bacanas da proa do expresso.

    A certo ponto, é revelado que a falta de alimento suficiente chegou ao ponto de levar as pessoas, desesperadas, a comerem os restos dos mortos, que também não tinham onde ser sepultados. Por outro lado, como dito, da metade até a locomotiva havia todos os luxos possíveis. Habitados pela elite de políticos, empresários, religiosos e militares. Desfrutam do bom e do melhor, com habitações confortáveis, locais para lazer e atividades culturais (teatro, cinema), e alimentos fartos e saudáveis, produzidos em hortas e granjas com frangos, coelhos e camundongos. Mas eles não vivem tranquilos, pois temem uma invasão da maioria explorada dos vagões retardatários.

    O Perfuraneve se divide em três histórias, escritas em momentos diferentes e reunidas nesta edição: “A Fuga” (Le Transperceneige; 1982 – depois renomeada como The Escape), “Os Exploradores” (The Explorers; 1999) e “A Travessia” (The Crossing; 2000). A primeira escrita por Jacques Lob – o autor original da obra –, e a segunda e a terceira por Benjamin Legrand, com todas ilustradas por Jean-Marc Rochette. Uma quarta aventura, Terminus, saiu depois, em 2015, com textos de Olivier Bouquet (1973) e Alexis Nolent (1967), com uma conclusão para a série. Isso porque, de fato, o final da terceira história deixa o desfecho em aberto. Além disso, uma prequela com três aventuras também foi publicada – entre 2019 e 2020 –, explorando eventos anteriores à primeira história, com textos de Nolent (assinado como Matz) e desenhos de Rochette. Os dois primeiros já saíram, e o terceiro está previsto para este ano.



    “A Fuga” mostra o início da trama, com o trem percorrendo o planeta após a catástrofe ambiental. É onde Proloff, um homem dos últimos vagões consegue chegar até onde as pessoas vivem melhor. Mas com ele se espalha uma doença rapidamente contagiosa, e ele é posto em quarentena. Onde também é colocada, a bela Adeline Belleou, ativista de um movimento político que busca melhorar as condições de vida dos miseráveis. Posteriormente, são levados até a presença do presidente e do general, onde conhecem a vida de luxúria da elite.

    Os líderes querem que o casal organize a população para que desocupem os últimos vagões e migrem para os do meio do comboio, pois pretendem descartá-los porque a locomotiva estaria perdendo velocidade e, com isso, pioraria as condições de sobrevivência, já que o aquecimento interno é mantido pela alta velocidade constante do veículo. Mas, Proloff e Adeline descobrem que, na verdade, a intenção é se livrar deles e dos explorados, descartando os vagões antes que saiam de lá. Lideram, então, uma revolta, mas que é inútil, já que a doença, supostamente trazida por Proloff, se espalhou e está a matar a maioria das pessoas. O filme se concentra justamente nesta história, a melhor das três.

    A segunda, “Os Exploradores”, avança no tempo, e apresenta um outro trem, o Desbrava-Gelo. Menor que o primeiro, mas também socialmente dividido entre uma minoria abastada e uma maioria explorada, transita na mesma rodovia circular. Viceja um medo comum: que possa colidir com o Perfuraneve, tido como desaparecido. Assim, o trem é desacelerado e freia para que uma missão de exploradores busque uma possível alternativa à vida confinada. Apenas um soldado volta com vida, Puig Valles, e mesmo a contragosto dos líderes, se torna uma liderança popular e se casa com Val Kennel, uma artista e filha do governante. O isolamento e claustrofobia é tão intenso que dá vazão ao surgimento de uma seita que acredita que, na verdade, eles vivem numa nave espacial e estão no espaço e não na Terra.

    Na terceira aventura, “A Travessia”, o mesmo Desbrava-Gelo recebe uma mensagem de rádio vinda do outro lado do oceano. Com isso, se reacende a esperança de que possa haver outro grupo de humanos sobreviventes, e se organiza uma missão para chegar até lá. É revelado que, o motor principal do Perfuraneve foi obtido, pois teria havido a temida colisão, embora sem uma consequência dramática, e agora, o motor será usado para potencializar o Desbrava-Gelo em sair dos trilhos, com o uso de esteiras. Valles irá liderar a missão, mas com a oposição de alguns líderes, incomodados com sua popularidade. Um motim estoura no interior do trem na ausência de Valles, mas isso não será o pior, mas sim a frustração com o fato do sinal de rádio ser apenas uma mensagem automática.

    No fundo, para além da ousada ideia de uma máquina movida numa energia de moto-perpétuo – um mito recorrente da Física –, o grande tema da obra é a luta de classes. De como a elite explora a maioria miserável, e a manipula para manter seus valores e luxos. Mas isso não dura para sempre – assim como a eficiência das máquinas –, e o eixo da narrativa é o conflito entre as duas classes, numa interessante extrapolação do materialismo histórico marxista. Ainda mais por viverem num ambiente confinado, com recursos limitados e sob severa censura e repressão.

    O único porém na obra é uma certa falta de unidade narrativa entre a primeira e as outras duas histórias. Talvez pelas demais terem sido produzidas muito tempo depois e haver alguma confusão sobre o surgimento do segundo trem e sua relação com o original e seu destino. Em todo caso, a força dramática e de aventura entre as duas últimas histórias torna o conjunto suficientemente robusto e satisfatório, ainda que inconcluso.

    O livro que tenho em mãos – por sinal, extremamente pesado! –, foi muito bem produzido pela Aleph, com uma qualidade gráfica e de papel de alta qualidade, a par, creio, com o original francês. Os desenhos em preto e branco só acentuam os dramas humanos, ainda mais porque em contraste com o aflitivo branco eterno do exterior do trem. O volume é completado por longo e intimista depoimento de Jean-Pierre Dionnet (1947), criador da célebre revista de quadrinhos Metal Hurlant (1975-1987; 2002-2004; 2006), sobre sua amizade com Jacques Lob e, através dela, sobre sua carreira até a criação de O Perfuraneve.

    Além desta HQ monumental e do filme, foi produzida também uma série de TV, entre 2016 e 2020, com quatro temporadas. Ainda não a vi, mas é provável que tenha seguido a linha crítica semelhante ao filme e, principalmente da HQ, embora com mais liberdade de ação, dada a quantidade de episódios.

    O Perfuraneve já é um clássico moderno da FC, por reunir algumas das características mais relevantes do gênero: uma premissa especulativa instigante, plena de drama e personagens complexos, além de discussões relevantes sobre a realidade e suas perspectivas. No caso, sobre os possíveis efeitos trágicos da crise climática e sua relação com o modo de produção capitalista.

Marcello Simão Branco