Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa: Os Melhores Contos do Séc. XX, organização e introduções de Luís Filipe Silva. Colaboração de Luís Corte Real. 416 páginas. São Pedro do Estoril: Saída de Emergência, coleção Bang!, n. 155, 2011.
A ficção científica (FC) e
gêneros semelhantes (como a fantasia, o horror, o policial, o western
etc) se tornaram populares graças ao seu desenvolvimento em torno das pulp magazines. Sim, na primeira metade do século XX, a massificação do gênero
ocorreu através da publicação de contos, noveletas e novelas em centenas de
revistas, produzidas com papel barato, preços muito baixos e farta distribuição
por todos os cantos dos Estados Unidos, inclusive em supermercados, farmácias, terminais
rodoviários, além dos pontos tradicionais, como livrarias e bancas de jornais.
Tiveram, além disso, um público cativo e definido, voltado para adolescentes.
Tal entusiasmo, incentivou a popularização de vários temas e conceitos. Na FC,
por exemplo, a exploração do espaço, os extraterrestres, robôs e cenários de fim
de mundo –, escritos por uma maioria de autores também jovens, muitos deles leitores
das próprias revistas. Isso criou toda uma comunidade em torno do
gênero, conhecida como fandom. Tais características, por outro lado,
identificaram a FC e afins, como pobres em termos de prosa e estilo, forjando
preconceitos, que em certa medida, sobrevivem até hoje.
Todo este movimento
cultural – de base literária – foi forte no país de economia mais pujante, de
maior mercado produtor e consumidor – daí a FC em especial ser vista, mesmo
hoje por pessoas mais desavisadas, como uma manifestação da cultura
norte-americana –, mas extrapolou suas fronteiras, seja exportando suas
revistas, seja, de forma mais importante, ajudando a desenvolver a pulp
fiction em outros países, principalmente na Europa. Mas com cada país adquirindo
suas próprias especificidades, de acordo com suas culturas e sociedades.
Pois, nesse sentido, Os
Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa imagina como poderia ter sido se
tivesse havido um movimento semelhante no país. Isso porque, afora as
características próprias do mercado editorial de Portugal, dificultou o desenvolvimento
o fato do país ter passado por um período extenso de regime autoritário, 41
anos de 1933 a 1974, o que limitou as possibilidades de expressões artísticas e
literárias mais livres.
Em todo caso, não é que
não tenha existido uma movimentação editorial de caráter pulp no país. Pois
foram sim publicadas histórias pulps em revistas próprias por lá, por parte de alguns autores
nacionais – como Diniz Machado e Roussado Pinto (este o nome verdadeiro de Ross
Pynn, conhecido principalmente como antologista) –, boa parte deles com pseudônimos
estrangeiros, e principalmente com material traduzido do exterior,
principalmente dos Estados Unidos. Aliás, no Brasil ocorreu um processo semelhante,
já a partir dos anos 1930, principalmente através de revistas pulps que
publicaram em sua maioria contos de autores estrangeiros, mas também quase
sempre com alguns brasileiros em cada edição. em especial entre as décadas de
1930 e 1970 – títulos como Mistérios, Meia-Noite, Galáxia 2000,
entre outros. Mas talvez principalmente este fenômeno tenha ganhado uma feição
particular em nosso país, com a publicação de livrinhos de bolso escritos por
brasileiros com o nome de pseudônimos anglófonos. Tanto é que tivemos entre
nós, R.F. Luchetti (1930-2024), que publicou centenas de obras como essas, sendo
justamente considerado o Rei do Pulp Brasileiro.
Desta forma, temos com
esta antologia quase que um exercício de história literária alternativa. Num
trabalho excepcional de pesquisa e criatividade, que em certos momentos de tão
intensa, me deixou em dúvida sobre sua veracidade integral –, Luís Filipe
Silva, apresenta, contextualiza e narra várias histórias com o melhor de uma
possível ficção pulp lusitana.
É uma antologia de ficção
e não-ficção quase que em pé de igualdade, pois o esmero, a competência e a
paixão são visíveis em cada página da obra. O livro contém uma introdução geral
e mais treze histórias, quase todas noveletas, escritas por nomes que se
mostram tão críveis que se chega a pensar se eles de fato teriam existido.
O artigo de abertura é
uma deliciosa análise crítica e biográfica sobre as origens e trajetória da pulp
fiction de Portugal, com os principais temas, autores, editores e revistas.
A seguir temos os relatos ficcionais propriamente ditos e quase tão
interessantes quanto eles são os textos de apresentação de cada um dos autores,
suas vidas e obras. Inclusive com as fotos deles e delas. Cheguei até a
pesquisar no google estes nomes, mas sem sucesso. Afinal, quem seriam de fato essas pessoas?
Talvez um vislumbre do universo paralelo em que viveram?
Cada história também foi
impressa no livro de forma fac-similada, isto é, com a reprodução da versão
original como publicada em uma dada revista. Mas há algumas delas inéditas,
sendo, então, reproduzidas, na forma original em que foram escritas.
Particularmente curioso é o caso de “A Noite do Sexo Fraco”, de Ludovico
Bombarda – um pseudônimo –, com o texto apresentado com trechos censurados pela
censura da ditadura de Salazar, principalmente concernentes ao regime político
e ao erotismo. Tudo isso acrescenta ainda mais realismo à proposta.
Todas as histórias são
assinadas por nomes de destaque do movimento pulp lusitano como, por exemplo,
Ruy de Fialho (autor de “O Segundo Sol”), A.M.P. Rodriguez (pseudônimo de um
autor desconhecido, com “Pena de Papagaio”), Marcelo Augusto Galvão (este um
brasileiro, que assina como Maxwell Gun, “Horror em Sangre de Cristo”), Tiago
Rosa (com “O Inconsciente”), a estrela Ana Sofia Casaca (com “Noites Brancas),
ela que também foi esposa de António Assunção, o principal editor do movimento,
quase que um Campbell português.
Praticamente todos os
principais gêneros da pulp fiction estão representados nesta antologia:
aventuras de guerra (“O Segundo Sol”), de horror (“A Expedição dos Mortos”, “O
Inconsciente”, “Noites Brancas”), de crime (“Valente”), fantasia épica (“A
Noite do Sexo Fraco” e “O Amaldiçoado de Ish-Tar”), e uma peculiaridade
temática característica da cultura portuguesa. Aventuras além-mar, com
histórias saborosas como “A Ilha”, “O Sentinela e O Mistério da Aldeia dos
Pescadores”, “Horror em Sangre de Cristo” e “Pirata por um Dia”,
As histórias são de alto
nível, quase que num contraponto à qualidade média baixa dos contos pulps
tradicionais. Destaco em especial a neolovecraftiana “A Ilha” (de João
Domingues), “Horror em Sangre de Cristo” (de Maxwell Gunn), “O Amaldiçoado de
Ish-Tar” (de Artur de Carvalho”), “O Inconsciente” (de Tiago Rosa) e “Noites
Brancas” (de Ana Sofia Casaca). Poderiam ser selecionadas para antologias do
melhor que a ficção de gênero curta luso-brasileira já produziu. Sem favor
algum.
Mas, afinal, quem seriam
os autores das histórias? Luís Filipe Silva revela numa entrevista ao jornal
português Público que os nomes dos verdadeiros autores das histórias
estão dispersos pelo livro, normalmente nas próprias biografias. Que as
histórias teriam sido selecionadas a partir de um concurso literário. Mas até
onde pesquisei não houve notícia de um concurso como esse. Cheguei até a pensar
que o autor fosse o próprio organizador. Enfim, trata-se de uma grande
brincadeira de adivinhação, mas que, no fim das contas, não é tão importante,
mas sim a qualidade da obra.
Senti falta apenas da FC,
que é, como dito no começo, o gênero mais praticado na pulp fiction.
Talvez os portugueses não a apreciassem tanto? É possível, mas no fim das
contas, esta tarefa é delegada ao último texto da antologia, a novela “Mais do
Mesmo”, de autoria de um certo Roger C. Bester, um norte-americano radicado em
Portugal que assinava suas histórias como João Barreiros. Uma piada interna com
um dos mais importantes autores da ficção científica portuguesa.
Os Anos de Ouro da Pulp
Fiction Portuguesa é um livro que recebi de presente do
próprio Luís Filipe Silva, pouco depois de seu lançamento. Ficou anos parado na
estante, mas recomendo que o leitor que o tiver em mãos não espere tanto tempo.
O livro, por tudo que já comentei, é uma verdadeira declaração de amor ao pulp
e aos gêneros nele praticados. Uma das obras mais criativas e inteligentes que
já li há muito tempo, e que se coloca como uma obra-prima da criação literária da
FC&F em língua portuguesa.
Publicada pela pequena
editora Saída de Emergência – como só poderia ser um projeto fora do comum como
esse –, é um livro raro e quase desconhecido do fandom brasileiro – e merece ser descoberto. Tal como a história da História do que poderia ter sido.
—Marcello Simão Branco